História dos hebreus
Há pouco menos de quatro mil anos, vários povos viviam às margens do Mediterrâneo, na Ásia e na África. Havia duas grandes potências: Caldeia e Egito. Entre esses dois vastos reinos, achavam-se pequenos países, como a Síria e Canaã (esta também chamada Palestina). Diversas tribos viviam aí da cultura agrícola e de produtos de seus rebanhos, entre as quais se achava a dos hebreus, que provinham do patriarca Abraão. Este homem e sua família eram oriundos de Ur, da Caldeia, de onde tinham emigrado para a Palestina no décimo nono século antes de nossa era.
Com a vinda de Abraão e de seus descendentes, começa a História Santa que a Bíblia nos conservou. As seguintes notas servem apenas para situar esses acontecimentos no curso da história geral do mundo antigo.
ABRAÃO emigrou para a Palestina na época em que reinava na Caldeia o grande rei Hamurábi. Antes de Abraão é-nos impossível fixar uma data para os acontecimentos mencionados nas Escrituras.
A vida nômade e agrícola das tribos provenientes dessa emigração durou cerca de quatrocentos anos. Em seguida, os hebreus, chamados o povo de Israel, de acordo com o sobrenome dado por Deus ao patriarca Jacó, retiraram-se para o EGITO, ocupando, sem dúvida, a região do delta do Nilo, que era a mais rica e produtiva de todo aquele país.
Tornaram-se então objeto de exploração por parte dos egípcios que deles se assenhorearam. Pelo ano 1250 a.C., Deus suscitou-lhes um libertador, na pessoa de MOISÉS. Sob sua guia, os hebreus atravessaram o mar Vermelho para se dirigirem à terra de Canaã. Depois de se deterem por quarenta anos no deserto, os israelitas empreenderam a conquista da PALESTINA pela tomada de Jericó (pelo ano 1200).
A terra ocupada foi distribuída em doze territórios de acordo com as doze tribos, as quais progressivamente se foram estabelecendo nas montanhas e vales de Canaã. Seguiu-se um período difícil de caracterizar. Os israelitas viviam em lutas contínuas com os antigos moradores dessas regiões. Esse período, chamado dos JUÍZES, durou cerca de 200 anos.
O pequeno povo dos hebreus foi-se desenvolvendo aos poucos, até que conseguiu organizar-se como um reino no meio de seus vizinhos. O último juiz, Samuel, que era também um profeta, terminou, depois de não pequena hesitação, por conceder ao povo a constituição de um REINO. Saul foi sagrado rei pelo ano 1000.
Saul nunca passou de um pequeno rei local, sendo seu reino apenas um prelúdio. Estava reservado a Davi, seu sucessor, firmar o poder real, primeiro sobre a tribo de Judá, e em seguida sobre o conjunto de todas as tribos israelitas.
A Davi sucede, em 970, Salomão, que organiza o reino de Israel, faz aliança com o Egito e com Tiro e constrói o Templo de Jerusalém.
Pouco depois de sua morte, sob o reinado de Roboão, em 930, há entre as tribos uma dissensão que termina com um CISMA: as dez tribos do Norte separam-se das de Judá e de Benjamim para constituírem um reino independente. Esse reino do Norte durará cerca de dois séculos, tendo por capital a cidade de Samaria, conquistada em 722 por Sargon II, rei da Assíria.
O reino de Judá escapou a essa catástrofe e continuou a existir sob a forma de um estado-tampão entre as duas potências rivais: o Egito e a Assíria (bem depressa subjugada pela Babilônia).
O rei Josias, em 622, empreende uma vasta reforma religiosa e social, cujos efeitos foram de breve duração. O reino de Judá foi declinando aos poucos até a expedição de NABUCODONOSOR que, em 598, se apodera de Jerusalém.
O conquistador transforma a Judeia em estado vassalo, deporta para a Babilônia uma parte da população e estabelece um vice-rei: Sedecias. Mas como este se revolta, Nabucodonosor toma uma segunda vez a cidade de Jerusalém e a incendeia em 589. A quase totalidade da população é então deportada para a Mesopotâmia, ficando o país conquistado sob a administração de um governo caldaico.
O exílio dos israelitas durou até que Ciro, rei da Média, autoriza a VOLTA DOS DEPORTADOS sob a direção de Zorobabel em 538 (ano em que se apodera da Babilônia).
Os israelitas, privados de seus reis, procuram organizar-se em uma comunidade religiosa. Em 331, a Palestina inteira é conquistada por ALEXANDRE MAGNO.
A partir de 323, a Judeia passa sucessivamente ao domínio da dinastia dos generais de Alexandre que dividem entre si o grande império grego. Pouco depois, entre 175 e 163 antes de nossa era, os judeus atravessam um período de grandes tribulações e perseguições por parte do rei da Síria, ANTÍOCO EPÍFANES. É a época da revolta e da guerra santa de libertação, empreendida por Judas Macabeu.
A Judeia conhece então uma independência que se estende por cerca de um século; sua administração estava nas mãos de um príncipe da família dos ASMONEUS, descendentes dos Macabeus.
No ano 63 a.C., Pompeu, o Grande, à frente do exército romano, invade a Palestina, reduzindo-a a uma PROVÍNCIA ROMANA. Pouco depois, César entrega o governo da Palestina a Herodes Magno, um príncipe idumeu. Após a morte deste, o imperador romano divide a Judeia em quatro partes (tetrarquia). O governo da Galileia cabe a Herodes Antipas, filho de Herodes Magno.
No ano 7 da nossa era, o governo da Judeia é confiado a um procurador romano. Mas foi-se delineando um novo movimento de independência, que provocou afinal a represália romana, uma guerra civil e o último sítio de Jerusalém, onde o imperador romano Tito entrou, no ano 70 da nossa era. Com a DESTRUIÇÃO DA CIDADE SANTA, termina a história dos antigos israelitas.
Foi sem dúvida no ano 5 antes da nossa era que Jesus nasceu em Belém, sendo César Augusto imperador romano. Jesus morreu na cruz, provavelmente no ano 30 sob Tibério. O apóstolo São Paulo converteu-se aproximadamente em 36. São Pedro sofreu o martírio em Roma conjuntamente com São Paulo entre 60 e 70 de nossa era. São João, o apóstolo, morreu na Ásia pelo ano 100.
A Bíblia em geral
Foi no seio do povo hebreu que nasceu a Bíblia.
A Bíblia é a coleção dos livros (considerados pela Igreja como escritos sob a inspiração do Espírito Santo) que contêm a palavra de Deus. A Bíblia é uma mensagem que Deus dirigiu e continua a dirigir aos homens.
O termo grego de onde provém a palavra Bíblia significava originariamente: os livros. Em latim, esse termo transformou-se num singular e passou a designar exclusivamente a coleção dos textos que formam a Sagrada Escritura.
A Bíblia completa contém 73 escritos (71, 72 — segundo outras maneiras de contar), obras de numerosos autores, tendo cada um deles características próprias.
Os títulos desses livros lembram por vezes o nome dos seus autores, outras vezes o nome dos seus destinatários, ou ainda os assuntos que neles são tratados. É-nos desconhecido o nome de muitos desses autores; alguns escritos são produto de uma colaboração, ou constituem uma coleção de textos antigos compilados posteriormente. Os autores bíblicos viveram em lugares e em ambientes muito diversos: cada um deles imprimiu na sua obra traços muito característicos de sua personalidade.
Mas, como todos eles escreveram sob a inspiração do Espírito Santo, é Deus mesmo quem deve ser tido como o autor primário de toda a Bíblia.
Divide-se a Bíblia em duas grandes partes, chamadas respectivamente ANTIGO e NOVO TESTAMENTO. O termo testamento substitui atualmente um antigo termo grego que significa pacto ou aliança. Com efeito, em toda a Bíblia trata-se da aliança feita por Deus com os homens, primeiramente por intermédio de Moisés e em seguida pelo ministério de Jesus Cristo.
É sumamente útil lembrar como foi feita cada uma dessas coleções. A coleção dos livros do Antigo Testamento originou-se no seio da comunidade dos judeus que a foram ajuntando no decorrer de sua história. Dividiram-na em três partes:
1. A Lei (Torá), que contém cinco livros (chamados mais tarde de o Pentateuco, que significa os cinco volumes), forma o núcleo fundamental da Bíblia. Esses cinco livros são: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
2. Os Profetas. Os judeus abrangiam sob esse título não somente os livros que hoje são denominados Profetas, mas também a maioria dos escritos que hoje costumamos chamar de Livros Históricos.
3. Os Escritos. Os judeus designavam por esse nome os seguintes livros: Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Daniel, Esdras e Neemias e as Crônicas.
É a essa divisão que se refere o divino Mestre quando mais de uma vez (p. ex. Mt 22,40) falou da “Lei e os Profetas”.
Essa coleção já estava terminada no segundo século antes da nossa era.
Nessa mesma época os judeus já estavam, em parte, dispersos pelo mundo. Uma importante colônia judaica vivia então no Egito, nomeadamente em Alexandria, onde se falava muito a língua grega. A Bíblia foi então traduzida para o grego. Alguns escritos recentes foram-lhe acrescentados sem que os judeus de Jerusalém os reconhecessem como inspirados. São os seguintes livros: Tobias e Judite, alguns suplementos dos livros de Daniel e de Ester, os livros da Sabedoria e do Eclesiástico, Baruc e a Carta de Jeremias, que se lê hoje no último capítulo de Baruc. A Igreja Cristã admitiu-os como inspirados da mesma forma que os outros livros.
No tempo da Reforma, os protestantes, depois de terem hesitado por algum tempo, decidiram não mais admiti-los nas suas Bíblias, pelo simples fato de não fazerem parte da Bíblia hebraica primitiva. Daí a diferença que há ainda hoje entre as edições protestantes e as edições católicas da Bíblia. Quanto ao Novo Testamento não há diferença alguma.
A Bíblia católica divide os 46 livros do Antigo Testamento do seguinte modo (alguns contam 44 livros, unindo Jeremias-Lamentações-Baruc):
1. O Pentateuco (isto é, a Lei).
2. Os Livros Históricos: Josué, Juízes, Rute, os dois livros de Samuel, os dois livros dos Reis, os dois livros das Crônicas ou Paralipômenos, os livros de Esdras e Neemias, os três livros de Tobias, Judite e Ester, e por fim os dois livros dos Macabeus.
3. Os Livros Sapienciais: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Livro da Sabedoria e Eclesiástico.
4. Os Livros Proféticos, designados pelo nome dos Profetas: Isaías, Jeremias (ao qual se acrescentam Lamentações e Baruc), Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.
A coleção dos livros do Novo Testamento começou a formar-se na segunda metade do primeiro século da nossa era.
Seus 27 livros são assim distribuídos:
1. Cinco Livros Históricos: quatro Evangelhos segundo S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João, e Atos dos Apóstolos.
2. Vinte e uma cartas dos Apóstolos. São Paulo escreveu 13 cartas: 1 aos Romanos, 2 aos Coríntios, 1 aos Gálatas, 1 aos Efésios, 1 aos Filipenses, 1 aos Colossenses, 2 aos Tessalonicenses, 2 a Timóteo, 1 a Tito e 1 a Filêmon. As outras cartas são as seguintes: 1 aos Hebreus, 1 de São Tiago, 2 de São Pedro, 3 de São João e 1 de São Judas.
3. Um Livro Profético: o Apocalipse de São João.
As duas coleções que formam a Bíblia foram sendo traduzidas do grego para o latim desde o segundo século da nossa era. Mas a tradução latina mais divulgada é a que fez S. Jerônimo à base dos textos originais hebraico e grego, no fim do quarto século, denominada ‘‘Vulgata’’ (‘‘vulgarizada’’).
Os livros da Bíblia apresentam um CONTEÚDO de extraordinária variedade. Acham-se aí por exemplo:
fragmentos de epopeia; |
textos legislativos; |
narrações propriamente históricas; |
poemas e orações; |
listas genealógicas; |
ensaios filosóficos; |
narrações episódicas ou romanceadas; |
um canto de amor; |
oráculos proféticos e sermões; |
cartas. |
Todos esses documentos são testemunhos da evolução da religião do verdadeiro Deus, ao longo da história do povo hebreu.
Diante de tamanha diversidade de assuntos, mormente se não perdermos de vista a redação desses mesmos documentos, que se estende por um período de cerca de mil anos, facilmente se pode compreender que eles não podem ser lidos e interpretados uniformemente. Os antigos hebreus não escreviam como os nossos historiadores modernos. Os onze primeiros capítulos do Gênesis, por exemplo, não foram escritos como um curso sobre as origens da humanidade, muito menos ainda como tantas lições de astronomia ou de história natural. Esses capítulos ‘‘relatam numa linguagem simples e figurada – adaptada às inteligências de uma humanidade pouco desenvolvida –, as verdades fundamentais necessárias ao conhecimento da mensagem da salvação, bem como a descrição popular das origens do gênero humano e do povo eleito’’ (Carta do secretário da Comissão Bíblica ao Cardeal Suhard).
Todos sabem que um poeta não escreve como um cientista e que toma muitas liberdades de linguagem (imagens, comparações, amplificações), as quais um historiador atual não se permitiria. Ninguém ignora igualmente que as tradições populares, em geral imprecisas, sempre embelezaram os heróis e ensombrearam os inimigos. Esse processo literário encontra-se nos mais antigos textos da Bíblia. Sabe-se como a mentalidade popular gosta de fixar em cantos a lembrança dos seus heróis; desses cantos a Bíblia nos conserva numerosos exemplos, como o hino sobre a vitória de Josué.
Por fim é bem notório como a parábola, a comparação, a anedota, a própria fábula são sugestivas e apropriadas para ajudar a compreensão de verdades profundas ou abstratas. Os autores inspirados – Jesus em primeiro lugar – não desdenharam utilizar-se desses processos (por exemplo, na história do patriarca Jó, na de Jonas, de Tobias, de Judite, de Ester); dessa forma, procuraram inculcar mais facilmente no espírito do leitor um ensinamento de caráter religioso.
INTRODUÇÃO PARTICULAR AOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO
O PENTATEUCO
Chama-se Pentateuco a coleção de cinco livros que formam por assim dizer o cerne da Bíblia. Os antigos judeus deram-lhe o nome de Torá (que significa a Instrução, a Lei) porque em sua parte principal esses livros continham textos legislativos inseridos numa moldura histórica.
Os cinco livros do Pentateuco são: o Gênesis (livro das origens), o Êxodo (cujo assunto principal é a saída do Egito), o Levítico (coleção de prescrições rituais relativas ao culto público e privado), os Números (narrações da permanência dos hebreus no deserto), e o Deuteronômio (coleção de discursos e de exortações à fidelidade para com Deus pela observância dos seus mandamentos).
Antiquíssima tradição considera Moisés como o autor do Pentateuco, sem afirmar, entretanto, que ele o tenha composto inteiramente. No estado atual da Ciência Bíblica, admite-se comumente que o fundo antigo de origem mosaica recebeu no decurso dos séculos da história dos hebreus diversos acréscimos e modificações, particularmente nos textos legislativos do Levítico e do Deuteronômio.
Gênesis
O livro Gênesis, ou o livro das origens (é a palavra pela qual começa o texto sacro), contém tradições da mais remota Antiguidade. Utilizou-se seu redator de fontes de origem diversa, as quais, por vezes, apresentam algumas divergências.
Não se trata de um verdadeiro livro de história (ao menos no sentido em que entendemos hoje história), nem tampouco de um manual de história natural com a finalidade de expor as origens do mundo e da humanidade. Seu autor teve em vista apresentar um ensinamento religioso que determina as relações entre o homem e seu Criador. Divide-se em duas partes: as origens propriamente ditas (caps. 1 a 11), e em seguida a história dos três grandes patriarcas do povo de Deus. Na primeira parte, os três primeiros capítulos são de particular importância.
O ensinamento, por mais imaginativo e popular que seja, é denso e profundo: Deus é o Criador do mundo e é distinto do universo. O mundo é bom. A finalidade da Criação é a paz de Deus, figurada no repouso do sétimo dia. O homem foi criado da terra, mas animado de um sopro de vida. Destina-se ele a viver na amizade com Deus, que lhe concedeu o dom da liberdade. Ora, a harmonia primitiva da criatura foi destruída. O homem, seduzido pelo poder da mentira, expõe-se a desobedecer Deus, na vã esperança de tornar-se igual a ele. Toma então consciência de si mesmo no sofrimento e na vergonha. Dessa forma, o pecado entrou no mundo. O homem foi excluído das delícias do paraíso. Foi-lhe contudo permitido alimentar a esperança de uma libertação, na qual podemos antever o germe da doutrina de nossa redenção por Jesus Cristo. Depois da primeira queda, o homem, entregue a si mesmo, é dominado pelo pecado. O primeiro crime é causado pela inveja. O mal generaliza-se numa corrupção que parece irremediável. Sobrevém o dilúvio.
Depois do dilúvio, entra em vigor a primeira aliança entre Deus e os homens. A humanidade salva das águas deve demonstrar sua fidelidade a Deus pela observância dos mandamentos divinos (Gn 9,1-7). A narração da torre de Babel e a confusão das línguas é a divina resposta à negligência humana em observar as cláusulas da aliança. O homem quase que volta ao caos primitivo.
A segunda parte do Gênesis (caps. 12 a 50) ensina, pela história dos patriarcas, como Deus colocou em Abraão os primeiros alicerces da verdadeira aliança, não mais com a humanidade inteira, mas com um povo eleito, do qual Abraão seria o pai. Essa aliança será proclamada por Moisés 500 anos mais tarde.
Vamo-nos aproximando do ano 2000 a.C. Abraão, pagão de origem, guiado por Deus, deixa a sua terra natal e vem estabelecer-se na Palestina. Aí ele recebe as promessas divinas: será o pai de um povo numeroso e abençoado. A aliança consistirá na fidelidade que o povo saído de Abraão deverá guardar para com Deus. Como sinal dessa aliança, foi instituído o rito da circuncisão para sempre.
Por outro lado, Abraão é chamado a testemunhar sua fé numa prova de excepcional importância: o sacrifício do filho único, no qual repousava a promessa divina. Abraão, depositário das promessas da aliança, viveu pela sua virtude sob o signo das bênçãos do Senhor e merecerá ser chamado o Pai dos crentes.
Isaac e Jacó aparecem em seguida. É principalmente neste que se fixa a livre escolha de Deus. Jacó, homem cheio de defeitos, é entretanto o elo que levará às gerações futuras a bênção divina. Ele recebe um novo nome – Israel – e torna-se um homem novo.
Entre seus filhos, José, apesar de suas vicissitudes, torna-se o titular da eleição e da bênção divina, que se realiza fora da lógica dos planos humanos.
A segunda parte do Gênesis propõe, portanto, um ensinamento relativo à missão do povo eleito. Este deve voltar ao seu Deus pela esperança de uma libertação futura, consoante à promessa divina, e pela fidelidade aos seus mandamentos.
Êxodo
A libertação do povo de Deus da servidão do Egito constitui o assunto do Êxodo (Êxodo significa saída).
Os hebreus, estabelecidos no delta do Nilo, depois da morte de José, tiveram que suportar o jugo dos egípcios. Em toda a Bíblia, o Egito vai se tornar o símbolo do adversário-tipo do povo eleito, o poder terreno que procura contrariar os planos divinos.
Deus chama Moisés para uma grandiosa missão e revela-se a ele primeiro na sarça ardente. Moisés torna-se o chefe do povo oprimido e combate, sob a guia divina, os poderes do mundo.
A passagem do anjo, que extermina os filhos dos egípcios, testemunha que o povo eleito, libertado, terá que viver, daí em diante, no temor de Deus e reconhecido ao seu grande benfeitor. A primeira festa de Páscoa foi cruenta: foi uma figura da grande e solene Páscoa, durante a qual, pela imolação de Cristo, o Cordeiro de Deus, toda a humanidade, espiritualmente falando, foi libertada do jugo do pecado e do demônio.
Depois de ter libertado seu povo, Deus o conduziu através das águas e através do deserto.
No monte Sinai, ele quis intervir solenemente e proclamar a aliança com seu povo: “Se obedecerdes à minha voz e guardardes a minha aliança, sereis, entre todos os povos, o meu povo todo particular… sereis uma nação consagrada” (Ex 19,5-6).
O Decálogo será a carta desse contrato, o Direito imposto por Deus ao seu povo libertado do Egito.
O Decálogo é seguido de um texto legislativo, fragmento antiquíssimo (caps. 20 a 23), primeiro esboço de uma legislação social e religiosa, completada mais tarde, e de leis rituais (caps. 25 a 30) redigidas posteriormente.
Um grande sacrifício (cap. 14) estabeleceu a solene conclusão dessa aliança. Entretanto, o pacto, apenas concluído, foi violado.
O povo cede à antiga tentação de materializar o seu Deus para torná-lo visível, construindo um ídolo, como símbolo de sua força e de sua fecundidade. Esse modo de manifestar ao ídolo o seu culto parece-lhe mais fácil do que adorar em espírito um Deus invisível. Deus irrita-se e castiga o seu povo, mas por fim mostra-se magnânimo. A aliança é renovada: a fidelidade dos hebreus, tanto às prescrições cultuais como aos mandamentos do Decálogo, deverá servir, para o futuro, de testemunho de seu reconhecimento para com os benefícios divinos.
O sinal visível do pacto entre Deus e o seu povo serão as tábuas da Lei, guardadas na arca da aliança. Essa arca tem o valor simbólico do trono de Deus: ela testemunha que Deus habita no meio do seu povo, como penhor da fidelidade de suas promessas.
Levítico
Para os fiéis atuais, a maioria das prescrições rituais do culto mosaico apresenta apenas um interesse documentário.
Com efeito, os descendentes de Levi foram colocados à testa do culto em Israel: recrutavam-se entre eles os sacerdotes e os servidores do templo. O Levítico é um manual redigido para eles, de acordo com usos já muito antigos. Esse manual passou por muitas transformações e recebeu adições depois da construção do templo de Salomão (século X a.C.)
Os antigos hebreus conheciam quatro espécies de sacrifício: os holocaustos, nos quais a vítima oferecida era totalmente consumida pelo fogo; as oblações, ou ofertas de frutos, de farinha e de outros produtos da agricultura e da criação que acompanhavam o holocausto cotidiano; o sacrifício pacífico, ou de ação de graças; e os sacrifícios de expiação, destinados a reparar os pecados e as faltas involuntárias contra as leis cerimoniais.
A importância das prescrições concernentes aos sacerdotes explica-se pelo fato de ocuparem as funções sacerdotais na vida dos hebreus um lugar da mais relevante importância. Essas funções foram confiadas exclusivamente aos membros de uma única tribo, a de Levi (daí o nome Levitas). Ainda no tempo de Jesus Cristo existia essa atribuição, embora menos exclusiva.
As muitas prescrições concernentes ao estado de ‘‘pureza legal’’ não admirarão àquele que compreende algo do respeito com que o povo hebreu – como aliás muitos outros povos da Antiguidade – cercava tudo aquilo que, na vida cotidiana, podia ser encarado numa relação particular com Deus ou com o seu culto.
Enfim, se encontrará no Levítico um esboço de código civil e de leis morais que, embora imperfeitas, testemunham como se tinha aperfeiçoado a inclinação do povo eleito pela verdadeira moral.
Não será inútil observar que a lei de Talião: ‘‘olho por olho e dente por dente’’ (Lv 24,17-20 e Ex 21,24), abolida por Jesus Cristo (Mt 5,38-42), constitui a seu modo um verdadeiro progresso, se considerarmos os costumes existentes então, segundo os quais costumavam, habitualmente, vingar sete vezes as injúrias e as injustiças recebidas.
Números
O nome do livro dos Números provém das importantes listas de números e de nomes contidos nos seus primeiros capítulos. No mais, este livro é uma continuação normal do Êxodo.
O livro dos Números supõe que o povo hebreu já estava dividido em doze tribos ou clãs, e que estas viviam uma existência mais ou menos autônoma, apenas com uma vaga coesão por participarem das mesmas crenças, do mesmo culto, da mesma legislação e da fidelidade à mesma aliança religiosa. As leis aí contidas se referem à permanência dos hebreus no deserto, mas foram retocadas e adaptadas à vida de comunidade desse mesmo povo.
A história dos hebreus no deserto não é, realmente, muito edificante. Formavam um povo de dura cerviz que reclamava uma vida fácil, murmurava contra Deus e chegou mesmo ao ponto de contestar a legitimidade da autoridade de Moisés (12,2). Todavia, apesar de suas inconstâncias, o povo eleito permanece sempre o objeto de particular misericórdia e de benévola atenção da parte de Deus.
O fim do livro dos Números narra as lutas dos hebreus com as povoações vizinhas à Palestina que se opuseram à sua passagem no decorrer dessa lenta imigração. Percebem-se nessas relações os perigos morais, aos quais os hebreus foram expostos: a pureza de sua religião tradicional sofreria graves ameaças.
Essas mesmas narrações explicam também como as instituições sociais e religiosas do povo eleito se baseavam na fé no Deus com o qual tinham feito aliança.
Deuteronômio
O quinto livro do Pentateuco é essencialmente religioso e jurídico. Deuteronômio significa segunda lei. (Com efeito, os capítulos 12 a 26 constituem uma repetição e um complemento dos capítulos 20 a 23 do Êxodo).
Devemos considerar a sua redação final como posterior às demais relações e documentos do Pentateuco. O seu texto deve ter permanecido ignorado por muito tempo. Descoberto sob o reinado de Josias, em 622 a.C., num ádito do Templo de Jerusalém, tornou-se a base de uma importante reforma religiosa e moral, depois de uma era de decadência e de idolatria.
A doutrina do Deuteronômio é apresentada numa íntima ligação com a legislação anterior a Moisés, de onde se seguem uma verdadeira continuidade e uma íntima coerência no desenvolvimento da revelação em Israel.
Antes de tudo, sob a forma de introdução, leem-se duas magníficas exortações à obediência, relativamente a Deus e à fidelidade às antigas leis da aliança.
Seguem-se três capítulos (4, 5 e 6) de capital importância. Tornaram-se como que o verdadeiro catecismo israelita, que trata das questões da adoração e do amor a Deus bem como da caridade para com o próximo.
Em seguida, surge-nos o texto da segunda legislação religiosa relativa ao culto, às instituições administrativas, à vida social fundamentada na convicção de que o povo, libertado por Deus da servidão do Egito, devia levar uma vida digna de tão excepcional benefício.
Enfim, o livro termina com dois maravilhosos discursos, que descrevem as bênçãos divinas sobre os israelitas fiéis e as maldições que atingirão os pecadores.
Num apêndice pode-se ler ainda a breve notícia da morte de Moisés, à qual é acrescentado um poema de encômios ao grande legislador.
O Deuteronômio é que nos transmite a pura religião de Israel. Ao lê-lo, encontramo-nos ante uma espécie de testamento espiritual desse homem cuja figura domina toda a história do povo hebreu. Aparece-nos ele aí todo impregnado do espírito dos profetas posteriores, continuadores tanto do seu livro como de sua obra.
Com esse livro fecha-se a coleção do Pentateuco, esse conjunto de narrações, de exortações e de textos legais, que urge considerar, antes de tudo, como o testemunho da fé em um Deus que quer reinar sobre a humanidade inteira, mas especialmente sobre o povo por ele escolhido, ao qual, como recompensa à sua fidelidade, promete a maior abundância de bênçãos.
A ideia central do Pentateuco é, portanto, a da aliança.
Quem diz aliança exprime o acordo existente entre duas partes que mutuamente se ligam por contrato. Fazendo Deus uma aliança com o homem, este é ligado por condições fixadas pelo Criador. Mas também o Criador se compromete de seu lado, em face do homem, a cumprir as suas promessas.
Os elementos do contrato, no qual se baseia a aliança entre Deus e o homem, estão contidos no Decálogo (Ex 20,2-17). Esse texto fundamental foi ampliado aos poucos até constituir o verdadeiro Direito, o código de lei: leis morais, leis disciplinares, leis rituais. Nesse Direito é que consiste o fundo de todo o Pentateuco. Não se poderia compreender bem o Pentateuco se se perdesse de vista que narrações e leis não podem ser consideradas separadamente, sendo que as primeiras formam a moldura das segundas e que umas e outras são destinadas a fazer valer a aliança que Deus deliberou concluir com os homens.
O livro do Gênesis deve ser lido por extenso. Contém as mais veneráveis e as mais solenes páginas de toda a Bíblia. Apenas os capítulos 9,11,36 e 46 (genealogias) é que poderiam ser deixados à parte.
Há no Êxodo diversas passagens legislativas cuja leitura apresenta menos interesse. Mas os capítulos seguintes são de essencial importância:
1 a 19, vida e missão de Moisés;
20, o Decálogo;
32 a 34, o bezerro de ouro e as manifestações divinas a Moisés.
Para aquele que toma contato com a Bíblia, o Levítico, com suas leis rituais e suas prescrições cultuais, causa decepção. Todavia, não será sem proveito que o leitor leia os capítulos 19 e 25 que contêm leis sociais, bem como o capítulo 26, no qual são enumeradas as bênçãos e as maldições prometidas aos fiéis ou aos pecadores.
Nos Números, impõe-se à leitura a bela fórmula de bênção (6,22-27), em seguida a relação das peregrinações dos hebreus (caps. 10, 14, 16 e 17), e por fim a narração dos episódios da água que saiu do rochedo, da serpente de bronze, da guerra contra Moab e do adivinho Balaão (20 a 25).
O Deuteronômio apresenta capítulos de excepcional importância: 4 a 6, exortação à obediência e recapitulação do Decálogo; 7 a 11, o que Deus fez pelo seu povo, e o que dele exige; 27, 28 e 30, bênçãos prometidas por Deus ao povo fiel.
LIVROS HISTÓRICOS
Josué
Deve este livro seu nome ao general e sucessor de Moisés, cuja missão é aí relatada. Seu autor permanece desconhecido. A redação final deve ter sido feita na época dos reis, mediante documentos antiquíssimos, que, em parte, podem remontar até os próprios tempos de Josué.
Os acontecimentos que este livro nos narra parecem datar do fim do século XIII a.C. Trata-se da lenta instalação dos israelitas na terra de Canaã. Apesar das derrotas, das privações e dos muitos obstáculos, o povo de Deus conserva inalterável esperança no cumprimento das promessas divinas.
As passagens principais são o episódio de Raab, a prostituta, recompensada por Deus pela assistência dada aos israelitas (cap. 2), a passagem do Jordão, assinalada por um prodígio comparável ao da travessia do mar Vermelho (cap. 3), a tomada de Jericó, relação que atribui ao poder divino a vitória dos homens (cap. 6), a derrota diante de Hai, atribuída ao crime de Acã, e a consequente tomada dessa cidade (caps. 7 e 8).
A vitória de Josué em Gabaon merece particular menção por causa da célebre narração da parada do sol. Parece que devemos interpretar esse texto — que é, aliás, uma citação tirada de uma antiga coleção de cânticos guerreiros — como uma espécie de figura de estilo poético, para exprimir o fervor da oração de Josué e, ao mesmo tempo, a imediata graça, concedida por Deus, de alcançar a vitória antes do pôr do sol (cap. 10).
As narrações de Josué não se esforçam por silenciar ou por encobrir os costumes cruéis e brutais dos povos antigos, mas timbram principalmente em enaltecer o poder divino, mais forte do que o dos inimigos. Em numerosas passagens lemos menções à fidelidade a Deus. O povo de Deus, atualmente, tão bem como nos tempos de Josué, não pode subtrair-se às condições de existência que lhe foram traçadas. Ainda hoje guerras e lutas são inevitáveis para que os homens possam atingir sua verdadeira pátria, que é o reino dos céus.
As palavras de despedida de Josué, já envelhecido (caps. 23 e 24), encerram um belo ensinamento de fidelidade, de gratidão e de confiança nas promessas divinas: “Apegai-vos, diz ele, ao Senhor que depôs em vosso proveito povos numerosos e poderosos… Se acaso vos desagrada servir ao Senhor, escolhei neste dia a quem quereis servir. Mas eu e minha casa serviremos ao Senhor”. A esta declaração, o povo responde: “Nós serviremos ao Senhor, nosso Deus e obedeceremos à sua voz”.
O livro dos Juízes demonstra quanto o povo foi infiel a esses compromissos e como a misericórdia divina não lhe faltou toda vez que esse mesmo povo se arrependia de seus desmandos.
Juízes
O livro dos Juízes, cujo autor é desconhecido, delineia a história do povo hebreu durante um período de cerca de 200 anos, desde a morte de Josué até meados do séc. XI antes de nossa era. Temos aí uma espécie de coleção de narrações épicas inspiradas nas ações heroicas de homens, chamados Juízes. Esses homens foram, antes de tudo, chefes militares em épocas perigosas. Surgiram no meio de diversas tribos que haviam libertado, ao menos provisoriamente.
É um período de decadência política e religiosa. As tribos israelitas ainda não têm força bastante para impor-se no meio das populações cananeias e para resistir à pressão dos filisteus. Por outro lado, o povo se vai deixando seduzir pela vida fácil das nações vizinhas, cujos costumes grosseiros e práticas idolátricas vai adotando.
Cada uma dessas pequenas epopeias é-nos descrita em planos semelhantes entre si, nos quais se descobre um movimento em quatro tempos: ‘‘Os israelitas fizeram o mal diante dos olhos do Senhor. A ira do Senhor inflamou-se contra eles e entregou-os às mãos dos seus inimigos, pelos quais foram escravizados. Mas eles gritaram, recorrendo ao Senhor, que lhes suscitou um libertador para livrá-los’’ (3,7-9).
Poder-se-ia dizer que a história é considerada aqui como uma verdadeira pedagogia divina: as desgraças são consideradas como um castigo, a libertação, como um perdão. Deus é o único Senhor e o único guia de seu povo.
Eis aqui algumas passagens mais notáveis: cap. 2, em que se expõe a interpretação que se deve dar aos acontecimentos que em seguida se vão ler; cap. 3, história de Otoniel e de Aod; cap. 4, história de Débora, a profetisa e juíza; caps. 6 a 8, história de Gedeão; cap. 9, o usurpador Abimelec; cap. 11, a história decepcionante de Jefté, que nos demonstra que os heróis do povo de Deus, afinal de contas, não passam de simples homens e que este povo, embora escolhido por Deus, estava ainda inteiramente eivado de costumes bárbaros das nações vizinhas; caps. 13 a 16, a história de Sansão, um homem eleito, mas desobediente, que enfrenta a paciência divina; ele não deixa de cumprir a missão à qual a graça o destinara e, em virtude dessa mesma eleição, obtém que o castigo divino seja atenuado e que em último lugar triunfe a misericórdia.
O livro dos Juízes encerra, em apêndice, duas relações particularmente violentas e cruéis. Difícil nos é hoje situá-las com exatidão. A primeira parece ser posterior à época dos Juízes: é a história da fundação de um pequeno santuário idolátrico, uma espécie de igreja dissidente. Esse episódio, assim como o seguinte – a violação do direito de hospitalidade por pessoas da tribo de Benjamim —, dá lugar a sangrentas represálias, que não deixam de causar estranheza a um leitor pouco avisado. Trata-se de uma época em que ainda reinava a lei de Talião, na qual as tribos se insurgiam para vingar as injúrias feitas a indivíduos e na qual unicamente a crueldade servia para reprimir os abusos ou as infrações ao direito comum. Urge notar, entretanto, que a relação não termina por um castigo nem por uma exterminação, mas pela reintegração de Benjamim na federação das tribos de Israel, sinal de magnanimidade e de perdão.
A leitura do livro dos Juízes prende o interesse dos leitores, apesar dos atos de barbarismo aí relatados por diversas vezes, testemunhando uma civilização ainda primitiva e um senso moral ainda em via de ser aperfeiçoado.
Rute
A história de Rute ocorreu no tempo dos Juízes. Não conhecemos o autor dessa encantadora narrativa, nem a data exata de sua composição, provavelmente posterior ao exílio.
Trata-se de uma mulher estrangeira, viúva de um judeu. Veio ela fixar-se em Israel para permanecer fiel ao afeto que tinha à sua sogra, Noemi. Aí desposou, depois de ter abraçado a fé israelita, Booz, que, de acordo com a Lei mosaica, estava obrigado a tomar por mulher a viúva de seu parente mais próximo sem filhos. Assim Rute, embora estrangeira, entra para a comunidade de Israel. Pelo seu casamento com Booz, torna-se uma antepassada do rei Davi, e figura como uma das quatro mulheres mencionadas na genealogia de Jesus (Mt 1,5).
Rute deve ser citada como um modelo de piedade filial e de fidelidade. ‘‘Para onde tu fores, disse ela, também eu irei; onde tu te detiveres, aí eu me deterei. Teu povo será o meu povo, teu Deus será o meu Deus’’ (1,16). Por outro lado, o fato de Deus tê-la elegido demonstra que a escolha do povo eleito não é tão exclusiva que Deus se desinteresse das outras nações. Ao contrário, temos aqui um sinal da universalidade da salvação.
Os dois livros de Samuel
Os dois livros de Samuel formavam, primitivamente, uma única obra. Ignora-se quem foi seu autor. A redação final deve ser posterior ao ano 622 a.C.
O autor serviu-se, sem dúvida, de tradições orais que se estenderam desde o fim da época dos Juízes até a do segundo rei dos israelitas: Davi; portanto, por cerca de 100 anos. O assunto dessa narração histórica pode ser assim resumido: a crise da realeza em Israel; o estabelecimento e o caráter sacro da dinastia de Davi.
Essas narrações são dominadas por dois grandes cultos brilhantes, apesar de seus lados sombrios: Samuel e Davi. Num segundo plano, aparece a fisionomia pálida e indecisa de Saul, que fracassou na execução de uma grave missão e foi reprovado formalmente por sua desobediência.
Samuel, eleito pelo povo durante um período de decadência política e religiosa, juiz e profeta ao mesmo tempo, representava o antigo conceito de Deus, único chefe e guia de seu povo. É o que se chama teocracia. Só depois de penosa hesitação e de longa resistência é que ele se resignou a conceder ao povo um rei.
Esse primeiro reinado não foi feliz. A autoridade de Saul começou bem depressa a vacilar. Sua débil saúde e sua neurastenia tornaram-no impopular e, no final de sua vida, uma dissensão entre o rei e o profeta-conselheiro tornou-o ainda mais desprezado diante do povo.
Mas o jovem Davi, pelos seus feitos guerreiros, foi conquistando sempre maior celebridade e o favor do povo. Consagrado rei em lugar de Saul, reinou primeiro sete anos em Hebron, sobre a tribo de Judá, e mais tarde em Jerusalém, sobre as doze tribos, fazendo de Israel um verdadeiro reino. Seus últimos anos foram entenebrecidos por revoltas e guerras civis.
Entretanto, esse rei, apesar de suas faltas, fiel à observância da vontade divina, tornou-se o condutor de seu povo conforme o coração de Deus, um predecessor do Messias Jesus, o qual foi, de um modo único, o guia, o rei e o salvador da humanidade.
Pode-se hesitar em fazer uma escolha entre as magníficas narrativas dos livros de Samuel, talvez as mais tocantes de toda a Bíblia. Encontramos aí trechos lindíssimos sobre a obediência a Deus por parte de Samuel e Heli (caps. 1 a 4), sobre a desobediência de Saul (caps. 13 a 15), sobre os começos do ministério profético (3 a 12), sobre a admirável amizade que unia Davi e Jônatas (2Sm cap. 1), sobre a queda e o arrependimento de Davi (2Sm caps. 11 e 12). Lemos aí as célebres narrações do combate de Davi com o gigante Golias, a proscrição de Davi por Saul, o reino de Davi, o crime e o arrependimento desse rei, e por fim as revoltas de Absalão e de Seba.
Os dois livros dos Reis
Formando primitivamente uma só obra, esses dois livros traçam-nos a história dos israelitas, desde a morte de Davi, que devemos situar no ano 970, até a destruição de Jerusalém, com a deportação do povo por Nabucodonosor em 587 a.C.
Os autores dessa compilação de fontes, de origem e de épocas diversas, são-nos desconhecidos. A maior parte certamente já estava redigida no final do século VII. As fontes dessa compilação são mencionadas com frequência: a mais importante é a Crônica dos Reis de Israel e de Judá, composta, sem dúvida, de acordo com os arquivos dos dois reinos.
Com a morte de Salomão, em 931, o reino foi dividido em consequência da separação das dez tribos do Norte, que se constituíram num reino independente, o qual, em 722, foi conquistado e deportado por Sargon II, rei da Assíria.
O autor permite-se um julgamento sobre cada um dos reis, comparando-os com Davi, que ele considera um rei íntegro e fiel. O número dos reis julgados maus é muito superior ao número dos bons. Só Salomão, Asa, Josafá, Joás, Ozias, Joatão, Ezequias e Josias escapam ao julgamento de reprovação, sendo os dois últimos considerados, aliás, como verdadeiros modelos. Urge notar que o critério desse juízo se baseia quase que exclusivamente na fidelidade ao verdadeiro culto, de acordo com o espírito do Deuteronômio, colocando-se o autor num ponto de vista totalmente religioso.
Os livros dos Reis contêm, em conjunto com notícias mais ou menos desenvolvidas com respeito aos reinos sucessivos em Israel e em Judá, dois trechos particularmente notáveis, concernentes aos profetas Elias e Eliseu (1Rs caps. 17 a 19; 2Rs caps. 1 a 8). Esses dois homens figuram entre as personalidades mais impressionantes de todo o Antigo Testamento, como grandes profetas, título esse já conferido ao próprio Samuel.
Profeta não significa o homem que prediz o futuro, embora ocasionalmente o faça. Profeta significa o homem que fala em nome de Deus. É, antes de tudo, um pregador que exorta o povo a ser fiel ao seu Deus. No começo do livro de Samuel, o profeta chamava-se ainda vidente.
Os profetas, portanto, falavam e agiam em nome de Deus, lembrando ao povo o seu destino e eram como que conselheiros privados dos Juízes e Reis; recordam-lhes os deveres, censuram-lhes as falhas e encorajam-nos às generosas iniciativas. Desde Moisés até João Batista, os profetas foram as testemunhas do verdadeiro Deus e trabalharam em prol do mais perfeito monoteísmo. Investiam contra a injustiça dos grandes e dos ricos, contra a inércia das massas populares. Viviam habitualmente como os seus contemporâneos e exerciam uma profissão particular. Havia, entretanto, vários agrupamentos de profetas, análogos a comunidades religiosas, vivendo os discípulos em torno de um mestre e levando uma existência frugal e apartada do convívio dos homens. Nas narrações sobre Elias e Eliseu, faz-se menção a essas corporações que, em todo o caso, se limitam a um ministério meramente oral.
Só do oitavo século em diante é que alguns profetas começaram a redigir as suas mensagens. Aliás, essa redação foi simplesmente acessória: faziam-se compreender, o que era o principal.
Nos livros de Isaías, de Jeremias e de Ezequiel são narradas estranhas ações, às quais os profetas recorriam com o fim de chamar a atenção: o porte de um jugo, o vaso quebrado, posições e gestos insólitos etc. Essas ações são simbólicas e, muitas vezes, os próprios profetas as comentam numa linguagem inteligível aos espectadores.
Esses homens de Deus eram notáveis reivindicadores. Têm a consciência despertada de não pregarem doutrina nova; sua missão consistia em lembrar ao povo os termos do contrato da aliança que os ligava a Deus. Mas pretendiam revelar aos seus ouvintes o verdadeiro sentido dos acontecimentos que os envolviam, sentido esse que aparece em sua perspectiva de eternidade: esses acontecimentos eram outros tantos sinais; cada derrota, cada revés é um castigo e um apelo; cada libertação é uma demonstração da graça e da fidelidade de Deus.
Outros profetas são ainda mencionados nos livros dos Reis: Aías, de Silo (1Rs 11), um profeta anônimo (cap. 13), Semeías (cap. 12), Jeú (cap. 16), Miqueias, homônimo do profeta-escritor (cap. 22), Isaías, o grande profeta cujos oráculos lemos na Bíblia (2Rs 19) e a profetisa Holda (cap. 22).
Lendo as narrações contidas nos livros dos Reis, pode surgir a ideia de que os governos não poderão subsistir com uma verdadeira estabilidade, se aqueles que detêm o poder não forem e não permanecerem fiéis à palavra de Deus. A missão dos profetas consistiria então principalmente em lembrar-lhes essa obrigação e em velar pela sua observância.
Fora das duas secções que dizem respeito a Elias e a Eliseu, os livros dos Reis encerram ainda notáveis passagens: o reino de Salomão (1 Rs 1-5; 9-11); a dedicação do templo (cap. 8); a divisão do reino (12-14); a história de Acab (20-22); a história de Atalia (2 Rs 11); a origem dos samaritanos (cap. 17); a invasão dos assírios (18-20); a descoberta do Deuteronômio e a reforma de Josias (22-23); o fim de Jerusalém (24-25).
Crônicas
Os dois livros das Crônicas, chamados também Paralipômenos, constituíram primitivamente uma só obra com os livros de Neemias e de Esdras. Percebe-se ainda o traço dessa unidade na coincidência do final das Crônicas com o começo de Esdras.
O cronista, que escreveu sem dúvida aí pelo começo do século III a.C., utilizou-se de grande número de fontes que ele cita com exatidão: os livros do vidente Samuel, do profeta Natã, os oráculos de Aías de Silo, as memórias de Jeú. Outras fontes eram os Anais dos Reis de Israel e de Judá; por fim, certos trechos dos livros de Samuel e dos Reis são reproduzidos textualmente.
O autor, certamente membro de uma família sacerdotal, coloca-se num ponto de vista particularmente religioso. Antes de tudo, quer pôr em evidência como Deus se utiliza do governo de reis fiéis para a realização de seus desígnios, nomeadamente para a conservação integral da aliança. Tenciona ele igualmente demonstrar que a verdadeira vocação do povo eleito consiste em dedicar-se ao culto divino no templo, que assim se deve tornar o centro de toda a nação. Justificava-se esse ponto de vista na época em que o livro foi exarado. Os judeus deportados foram então reintegrados na Palestina pelo decreto de Ciro, em 536, depois de terem permanecido cerca de 70 anos na Babilônia. Já não existia, então, nenhuma autonomia nacional. Só a religião e o culto é que ainda podiam servir para fortalecer a alma da comunidade judia restaurada. A explicação dessa transformação de uma nação politicamente autônoma numa comunidade religiosa constitui a finalidade do autor das Crônicas.
Essa obra parece ser uma reivindicação, cheia de convicção, do primado do culto, da religião e da fidelidade à aliança divina sobre todos os valores políticos e terrestres. Em vários lugares ela testemunha a mais viva fé na retribuição divina numa intervenção direta de Deus no curso dos acontecimentos históricos. Dessa forma, é sua intenção inculcar no leitor uma sólida esperança na vinda de uma realeza espiritual e um digno sentimento de soberania exclusiva de Deus sobre o mundo.
Três passagens dos livros das Crônicas merecem ser assinaladas de modo particular: as duas orações de Davi (1Cr 17 e 29); a oração de Salomão suplicando a Sabedoria (2Cr 1); a dedicação do templo (2Cr 6-7).
Esdras – Neemias
Essas duas obras, primitivamente unidas, devem ser certamente atribuídas ao autor das Crônicas, das quais formam a sequência natural.
Esses livros contêm diversos textos de arquivos, listas de recenseamento e documentos oficiais em aramaico e as memórias pessoais de Esdras e de Neemias. Um estudo aprofundado do texto revela que a ordem cronológica nem sempre foi seguida à risca, e que necessário se torna inserir o livro de Neemias depois de Esdras 6,22.
O autor relata-nos a restauração religiosa ocorrida quando Ciro, rei dos persas, autorizou, em 538, os judeus deportados a voltarem novamente à Judeia. Esses judeus, assim que se foram estabelecendo em Jerusalém, começaram a reconstruir o templo. Mas a oposição dos vizinhos hostis impediu-os de restaurar as fortificações da cidade. Foi então nomeado e empossado, em 445, um governador leigo, que muito teve de esforçar-se para restaurar uma sociedade eivada de abusos religiosos (mormente muitos casamentos entre judeus e pagãos) que constituíam grande perigo para a estabilidade da religião. Foi nesse momento que interveio o sacerdote Esdras, personalidade cuja influência foi crescendo sempre mais. Por sua atividade ele conseguiu que a Lei mosaica fosse novamente observada e que o culto fosse regulamentado e praticado, nomeadamente quanto à questão dos casamentos mistos.
Pelo fim do período descrito nos livros de Esdras e de Neemias (cerca de 400), a comunidade judaica de Jerusalém parece ter conquistado certa estabilidade: a aliança divina aparece então como restabelecida, e os judeus, privados como então estavam da independência política, unem-se numa verdadeira comunidade religiosa. Portanto, de uma nação política, o povo eleito torna-se uma igreja, isso pelo efeito todo particular da escolha de Deus e em função da aliança sempre existente. Notava-se, então, um verdadeiro despertar espiritual e moral. A partir dessa época, a classe sacerdotal vai adquirindo uma influência sempre maior: o templo aos poucos centralizava a nação toda, o culto alcançou um lugar mais e mais preponderante na vida popular. Assim foi que, pouco a pouco, o judaísmo foi apresentando aquela fisionomia toda particular, qual o conhecemos pelas narrações evangélicas. Os judeus insistiam na necessidade de um culto exterior e de uma observância rigorosa da Lei, criando assim aquele deplorável formalismo, repassado de hipocrisia religiosa, que nos é conhecido pelo nome de farisaísmo. Os fariseus eram homens que se tinham em conta de justos e de santos, unicamente pela observância literal dos ritos cultuais e das regras exteriores da Lei.
O capítulo 9 de Esdras, bem como a bela oração de Neemias (cap. 1) são trechos encantadores que merecem ser lidos e meditados. Igualmente, a narração da reconstrução do templo (Es 4-6) e a oração de confissão dos pecados (Ne 9-10) são admiráveis.
Tobias – Judite – Ester
Esses três livros apresentam um aspecto comum que deve ser caracterizado antes de passarmos a uma análise particular de cada um.
Não são obras meramente históricas. A intenção de seus autores é manifesta: quiseram servir-se de elementos históricos, conhecidos, como uma moldura, na qual inseriram, sob uma forma concreta, ensinamentos religiosos. Os fatos verdadeiros ou mais ou menos fictícios, embelezados, poetizados, são, portanto, apenas um modo de apresentar uma ideia. Nesses livros, lemos o que se pode chamar de “narrações episódicas ou literatura edificante”.
O livro de Tobias foi certamente escrito em aramaico na metade do século II a.C. O texto primitivo só nos foi conservado em versões gregas e latinas que por vezes discordam entre si, como indicam as variantes nas notas do texto. A história de Tobias tem uma grande importância religiosa. Avantaja-se pela comovente evocação do ideal religioso de uma família de israelitas que primava pela fé. Apresenta-se a história como transcorrida em Nínive, no tempo do exílio. Apreciamos nessas páginas a virtude, a piedade e a fidelidade do velho Tobit, postas à prova pela Providência divina; e, em seguida, admiramos como essa mesma Providência divina tudo encaminha para o seu bem verdadeiro, atendendo às duas orações, feitas simultaneamente pelo ancião cego e pela jovem Sara, infeliz, como era, em seus sucessivos casamentos: é-lhes enviado o anjo Rafael que conduz o jovem Tobias durante a viagem; ele o faz encontrar o remédio para a vista de seu pai, ao mesmo tempo que lhe consegue a esposa que o fará feliz.
Em torno desse assunto central, vão-se inserindo belíssimas notas de profunda riqueza religiosa quanto ao amor de Deus, à piedade filial, à perseverança nas provações, à misericórdia, à esmola, à santidade do casamento. O livro de Tobias é um verdadeiro espelho de um judeu justo, espelho esse que se pode aplicar a um cristão quase sem nenhuma transposição.
O livro de Judite não nos foi conservado em seu texto hebraico. Resta-nos apenas a sua tradução grega. O autor é ignorado.
Pela descrição de uma situação concreta, a libertação de Betúlia, sitiada por Holofernes, general de Nabucodonosor, o autor quer demonstrar que a confiança em Deus, manifestada por fiel dedicação a seu serviço, acaba triunfando de todas as potências terrestres, por mais temíveis que sejam. Ao poder incomensurável de um senhor deste mundo, é oposta a fraqueza de uma mulher; mas essa mulher é uma judia digna dessa raça que pratica fielmente a Lei, crê na força da oração e confia em seu Deus.
O espírito da vingança e do fanatismo nacional, que em prol do triunfo justifica o emprego de todos os meios, mesmo do assassínio, estava tão profundamente arraigado na alma judia que, como no caso presente, parece poder subsistir ao lado dos mais elevados sentimentos. O livro de Judite leva os leitores espontaneamente a pensar nas lutas que os judeus tiveram que sustentar pela sua fé, lutas essas que se tornaram particularmente agudas dois séculos antes da era cristã. Será certamente por essa época que o livro de Judite foi composto.
O livro de Ester, cuja parte principal subsiste ainda em hebraico, contém uma série de suplementos escritos num grego assaz tardio. Para explicarmos de onde devem ter procedido esses suplementos, podemos pensar numa tradução independente do texto primitivo ou numa adição de data mais recente. São Jerônimo, quando traduziu a Bíblia para o latim (fim do século IV da nossa era), colocou esses suplementos num apêndice. A nossa tradução reproduz fielmente essa disposição, explicada nas notas que acompanham o texto.
O autor é desconhecido. Podemos supor que ele tenha vivido no fim do século IV a.C. O livro retrata a época persa, durante a qual os judeus eram dominados e oprimidos por estrangeiros. Lemos aí o célebre episódio do decretado morticínio dos judeus, frustrado pela intercessão da rainha Ester, ao qual se seguiu a tremenda vingança, cruel e violenta, por parte dos judeus. São deparados também nesse livro esse misto de espírito de vingança e de grande elevação mental.
O autor parece ter querido inculcar no leitor, de um lado, a ideia de que Deus salva seu povo por meios inesperados e irrisórios; de outro lado, o intenso sentimento de patriotismo e de orgulho nacional. Poder-se-ia pensar mesmo numa verdadeira volta àquele nacionalismo fanático que se foi formando outrora com o crescente poderio político dos dois reinos de Israel e de Judá.
Na primeira parte do livro não ocorre nem uma única vez o nome de Deus; no suplemento, ao contrário, essa ausência do nome divino é como que corrigida. Entretanto, a ação da Providência divina faz-se sentir a cada passo na sucessão dos acontecimentos sempre favoráveis ao povo eleito e que deram lugar à instituição da festa nacional do Purim.
Trata-se, ainda aqui, da vingança, da violência e do orgulho nacional. O povo de Deus provou que tinha necessidade de uma redenção para aprender a colocar sua esperança em coisas mais altas.
O livro de Tobias pode ser lido e relido sem excetuar-se trecho algum. No livro de Judite é particularmente notável a magnífica oração do capítulo 9, no meio da cativante narrativa da libertação de Betúlia. No livro de Ester podemos ler com proveito as duas orações, de Mardoqueu e de Ester (caps. 13-14), e em seguida a intervenção de Ester junto ao rei Assuero (caps. 5-7).
Os dois livros dos Macabeus
Os dois livros dos Macabeus eram, originariamente, dois escritos distintos um do outro.
Provém-lhes o nome do sobrenome dado a Judas, filho de Matatias, por ocasião da terrível derrota que infligiu aos inimigos. Esse sobrenome tornou-se hereditário em toda a sua família.
O Primeiro livro dos Macabeus estende-se por um período de quarenta anos, do ano 175 até 135. Foi redigido na Palestina, no começo do século I antes da nossa era, em hebraico ou aramaico, tendo-se perdido esse texto primitivo. Possuímos hoje apenas um texto grego. Coloca-se o autor sob um ponto de vista religioso, salientando a predileção divina por Israel, a reação dos judeus que permaneceram fiéis contra o poder sírio que ocupava o seu território, e a sua luta contra o paganismo grego que ameaçava invadir a comunidade israelita. Aconteceu isso, na época iniciada logo após a morte de Alexandre Magno, em 323. O seu império, por falta de um herdeiro de seu próprio sangue, foi dividido entre os seus generais, passando a Palestina, juntamente com a Síria, a ser dominada pela dinastia dos seleucos. Um dos seus sucessores, Antíoco Epífanes (175-163), esforçou-se por todos os meios para iniciar os judeus no espírito helênico. Eclodiu entre os judeus uma revolta, denominada macabaica, primeiro só de caráter religioso, e em seguida transformada numa guerra santa de independência, a qual se prolongou por um século, sob a chefia dos descendentes dos macabeus, terminando com uma verdadeira autonomia nacional.
Foram os romanos, sob Pompeu, no ano 63 a.C., que reduziram definitivamente essa independência e sujeitaram os judeus. Dominados pela força, os judeus alimentavam implacável ódio contra os usurpadores de sua terra e viviam em perene expectativa de uma insurreição. Compreende-se que as esperanças messiânicas se foram tornando ainda mais generalizadas e vivas. O espírito judaico da época caracterizava-se por um misto de legalismo e nacionalismo. Semelhante era o ambiente por ocasião do aparecimento de Jesus Cristo. Nesse livro salienta-se particularmente os sentimentos de fé: uma fé ardente, acompanhada de um sentido quase exagerado da infinidade de um único Deus, de uma inviolável fidelidade à Lei e de um apego fanático à cidade santa de Jerusalém.
O Segundo livro dos Macabeus, muito diferente do primeiro quanto ao fundo e quanto à forma, narra alguns episódios da primeira parte da luta, descrita no livro precedente.
A obra foi redigida em grego, mais ou menos no ano 100 a.C., por um judeu que, cuidadosamente, resumiu um escrito não inspirado, composto por Jasão, de Cirene, no ano 160.
O escopo dessa obra é, antes de tudo, a edificação religiosa. Desse modo, temos ante os olhos narrações mais episódicas do que históricas. São-nos apresentados heróis e ações heroicas que testemunham uma fé ardente e viva, que não arrefece nem mesmo perante o martírio. A sua finalidade imediata é avivar o sentimento patriótico dos judeus que residiam em Alexandria.
Acha-se, nesse Segundo livro dos Macabeus, o testemunho de uma crença até certo ponto nova nos ensinamentos religiosos dos judeus: a fé na imortalidade da alma. É só nesse livro e no livro da Sabedoria que se manifesta esse desenvolvimento na revelação, sendo ele o último a ser escrito antes do Evangelho.
A leitura dos livros dos Macabeus apresenta menos riqueza em conteúdo religioso do que o resto dos livros históricos. Entretanto, algumas célebres passagens merecem toda a atenção.
No primeiro livro são notáveis: o retrato de Judas Macabeu (cap. 3); a morte de Antíoco Epífanes (cap. 6); a aliança com os romanos (cap. 8); o governo de Simão (cap. 14).
No segundo livro recomendam-se: o prefácio (cap. 2); o episódio de Heliodoro (cap. 3); o martírio de Eleazar e dos sete irmãos (caps. 6 e 7).
LIVROS SAPIENCIAIS
Jó
O livro de Jó é uma composição literária estreitamente aparentada com o gênero dramático, cuja ação nos é apresentada numa introdução e numa conclusão em prosa que enquadram um longo poema dialogado.
O autor, aliás desconhecido, situa a sua composição no século V a.C., em lugares e em situações assaz imprecisas. O personagem de Jó era, para os antigos israelitas, uma figura-tipo do justo sofredor. O assunto do poema é o problema do sofrimento.
Três amigos (aos quais mais tarde se ajunta um quarto) apresentam-se a Jó para consolá-lo em suas desgraças: – inopinadamente ele se vira privado de todos os seus bens e de seus próprios filhos, ao mesmo tempo que atingido em sua própria saúde. Os amigos de Jó representam as ideias correntes em Israel: o sofrimento é um castigo; todo homem é pecador; apenas, porém, com uma ideia nova, a da missão educativa e purificadora do sofrimento.
O problema, embora ventilado de todos os lados, permanece sem solução. Às piedosas e inofensivas consolações que os amigos propõem ao patriarca em seus sofrimentos, Jó responde com uma afirmação de sua inocência e com um apelo incessante a Deus, do qual sabe perfeitamente que procedem as suas provações.
Então, Deus mesmo entra em cena: responde a Jó, reconhecendo que ele é um justo, mas que não procedeu com bastante retidão, pretendendo perscrutar os desígnios de Deus. Enviando provações aos homens, o Senhor é ao mesmo tempo justiça e bondade. Ao homem toca humilhar-se com paciência e esperança na sua presença, sem querer desvendar os planos misteriosos do Criador.
Portanto, o problema do sofrimento não é resolvido totalmente. Cumpria ao homem esperar a satisfatória solução que lhe seria dada pela voluntária paixão e morte de Jesus Cristo; só então é que a mente humana poderia descobrir o sentido divino e eterno do sofrimento e tirar dele não só a conformidade com os decretos divinos, mas ainda a verdadeira paz e as consolações celestiais.
Esse poema, composto num estilo totalmente oriental, estende-se longamente em discursos extenuantes. Entretanto, alguns capítulos podem ser enumerados entre as composições mais belas de toda a Bíblia.
Tais são: o prólogo (caps. 1-2); a primeira queixa de Jó (cap. 3); as lamentações do justo (vários capítulos); o apelo a Deus (caps. 12-14); as obras de Deus e seu governo (caps. 36-37); as palavras de Deus sobre as maravilhas da Criação (caps. 38-42).
Salmos
O Saltério era o livro de oração dos antigos judeus. Também para os cristãos ele tornou-se o livro dos enlevos espirituais, depois de tê-lo sido para o próprio Jesus Cristo.
A palavra salmo (psalmus) é a tradução do termo hebraico que quer dizer louvores. Entretanto, esse termo exprime apenas um aspecto do conteúdo desse livro, no qual se encontram lamentações, cânticos de penitência e de reconhecimento, poemas didáticos e súplicas ardentes. Os salmos eram cânticos destinados principalmente ao uso litúrgico do Templo de Jerusalém, mas neles percebe-se muitas vezes o eco de sentimentos religiosos inteiramente pessoais.
Já em remota Antiguidade, muitos desses cânticos tinham sido reunidos em coleções, das quais encontramos alguns traços na divisão atual em cinco livros. Foram certamente os autores dessas coleções que lhes inseriram as conclusões ainda hoje existentes. Parece averiguado que essas coleções foram sendo feitas independentemente umas das outras; daí não nos podermos admirar se encontrarmos algumas repetições. Foram esses mesmos redatores que, por vezes, ajuntaram dois salmos num só e que escreveram os títulos que ainda hoje lemos em muitas dessas composições. Em todo caso, essas inscrições são antiquíssimas. Conservaram-nos elas o nome do provável autor e várias circunstâncias da composição dos salmos, e apresentando expressões assaz obscuras a respeito da sua execução musical e do seu emprego litúrgico. Quando os Salmos foram traduzidos para o grego, a significação exata dessas inscrições era duvidosa; hoje muitas vezes podemos apenas conjeturar o que elas significavam. O mesmo se deve dizer da palavra sela que aparece no fim de numerosas estrofes. Essa palavra, em vista de seu sentido obscuro, foi omitida na presente tradução.
Ignora-se quando e quem reuniu a última coleção dos cinco livros em uma única, a que nos foi conservada. As inscrições do texto original atribuem 74 salmos a Davi, 10 aos filhos de Coré, 8 a Asaf, 2 a Salomão, e 1 respectivamente a Hemão, a Etão e a Moisés.É difícil averiguar o valor histórico exato desses dados. Entretanto, não há motivo para duvidar de que numerosos salmos provenham do rei Davi. Sejam quais forem os seus autores humanos, a inspiração divina revestiu a sua beleza natural de um profundo sentido religioso, que fez deles, para sempre, uma inexaurível fonte de vida religiosa e de piedade.
Na literatura da Antiguidade, o caráter religioso dos salmos salienta-se pela sua incomparável profundidade. Todas as cordas do sentimento religioso são neles dedilhadas: respeito à majestade divina, gratidão pela misericórdia infinita e pelo perdão de Deus, absoluta confiança na Providência, penitência e contrição ante os próprios pecados, tristeza e temor dos perigos que nos cercam, paz, consolação, coragem, obediência, alegria e esperança. Por outro lado, os poemas messiânicos e as numerosas alusões ao Filho de Davi tornam os salmos ainda mais familiares às nossas almas cristãs. Não admira, pois, o lugar todo particular que o saltério assumiu na liturgia da Igreja.
Essas composições dirigiram-se, em primeiro lugar, aos judeus. Daí serem impregnadas do espírito judaico, que ainda não tinha atingido a plenitude da caridade cristã. Como em outras passagens do Antigo Testamento, a justiça divina é descrita nos salmos de um modo rude e forte. Muitas vezes, o ruído das armas perturba a calma da oração. Entretanto, urge considerar: primeiro, a mentalidade própria dos hebreus, segundo a qual só Deus era o rei do povo e que os levava a considerar como inimigos de Deus os inimigos do povo eleito; assim, estes deviam ser julgados severamente. Em seguida, o crente sabia que o poder do inimigo devia ser destruído no futuro, porque assim o exigia a santidade de Deus. Dessa forma, a vingança, expressa com tanta violência, era atribuída ao próprio Deus; daí, a sua misericórdia acompanhar a sua justiça. Não nos afastaremos, portanto, do verdadeiro espírito dos salmos, procurando penetrar no cerne espiritual que está por debaixo da casca dura, e aplicá-lo às nossas lutas interiores, como outros tantos apelos veementes ao auxílio divino.
Muitas vezes o homem vê-se inclinado para as coisas terrenas e mal consegue rezar. “Não sabemos o que devemos pedir, nem rezar como convém”, dizia São Paulo (Rm 8,26). Nos salmos são-nos apresentados maravilhosos formulários de oração que nos ensinam como devemos nos dirigir a Deus.
Em seu sentido verdadeiro e profundo, os salmos só poderão ser devidamente interpretados por aquele que crê em Jesus Cristo. Isso é evidente quanto aos salmos messiânicos. Mas a mensagem de outros salmos, como de inumeráveis textos bíblicos, só encontra sentido verdadeiro à luz da vida do Senhor Jesus. Os sofrimentos do justo, por exemplo, são, nos salmos, uma clara imagem dos tormentos suportados por Jesus na sua paixão.
O saltério é, em verdade, o livro de oração da Igreja e da alma cristã.
Eis uma relação dos mais belos salmos, agrupados de acordo com seu sentido geral:
Salmos de confiança: 22, 26, 120, 130;
Ensinamentos da sabedoria: 1, 31, 36, 118;
Meditações: 8, 9, 11, 35, 38, 48;
Louvores: 7, 18, 28, 46, 92, 95, 96, 97, 145;
Salmos reais ou messiânicos: 2, 18, 19, 20, 21, 44, 68, 71, 109, 144;
Lamentações e orações intensas: 24, 31, 32, 43;
Ações de graças: 33, 65, 102, 135.
O texto hebraico original muito sofreu no decurso dos séculos. Daí as numerosas divergências, principalmente nas duas primeiras coleções, entre o texto original e a versão latina, sendo esta apenas uma tradução imperfeita do texto grego.
Na numeração dos salmos, existe uma divergência entre o texto hebraico e a versão latina da Vulgata. Essa divergência provém no texto hebraico da divisão imprópria do salmo 9, restituída em sua unidade pelas antigas versões. A numeração do texto latino, adotada no breviário e no missal romanos, é conservada na presente tradução. Portanto, os leitores que desejarem saber qual é a numeração do texto hebraico deverão aumentar de uma unidade o número dos salmos desde o salmo 10 até o salmo 147.
Provérbios
Por uma ficção literária, o livro dos Provérbios é atribuído a Salomão. Menciona, com efeito, o Primeiro livro dos Reis (4,29-34) que Salomão produziu numerosíssimos provérbios de sabedoria. Na realidade, o livro dos Provérbios é uma coleção composta de oito partes:
1. A primeira é formada por seis exortações, entrecortadas de evocações poéticas, nas quais a sabedoria personificada entra em cena e pronuncia os seus discursos.
2. A grande coleção salomônica de provérbios que tratam dos vários estados da vida.
3. e 4. Duas pequenas coleções, atribuídas aos “sábios”.
5. Provérbios salomônicos recolhidos “pela gente do rei Ezequias”.
6. Um fragmento atribuído a Agur, filho de Jaque, autor aliás desconhecido.
7. Uma coleção de conselhos de uma rainha-mãe ao seu filho.
8. Enfim, um poema acróstico de acordo com as letras do alfabeto, que faz o elogio da mulher forte.
Entre as sentenças contidas nesse livro, grande número é de origem popular, como os rifões. Importante fragmento (caps. 10-22 e caps. 25-29) é atribuído a Salomão, sem que se possa saber com exatidão qual seja a parte que esse rei possa ter tido na sua redação.
Os provérbios atribuídos aos sábios, aliás desconhecidos, devem ter sido compostos antes do exílio, embora os capítulos 30 e 31 pareçam posteriores a ele.
A primeira parte (caps. 1-18) é considerada atualmente como uma composição feita depois do exílio. Ignora-se a data da constituição definitiva desse livro sob a sua forma atual; apenas devemos supor que ela tenha sido feita depois que apareceu o Eclesiástico (no começo do século II a.C.), porque esse livro é aí mencionado.
Acham-se no livro dos Provérbios numerosas passagens nas quais se pode descobrir frisante parentesco com textos anteriores egípcios e orientais. Não sabemos em que medida o autor inspirado se utilizou de predecessores estrangeiros, mas é certo que também os hebreus sofreram a influência dessas grandes civilizações. Por influência não entendemos uma dependência completa. A moral dos Provérbios, fundada na crença e na revelação de um único Deus, mostra-se superior à de todos os produtos pagãos da mesma espécie.
Ressalta no livro dos Provérbios um conceito puríssimo de Deus, de um Deus insondável, justo, benevolente, misericordioso e criador.
Do ponto de vista moral, a humanidade é dividida em duas categorias: os sábios e os insipientes. Por sábio deve-se entender todo aquele que é inteligente, bem avisado, virtuoso e íntegro. Entre os insipientes devem ser enumerados os maus, os mentirosos, os negadores, os ladrões, os malfeitores, os perjuros. O autor insiste particularmente nas virtudes da caridade, da justiça, da prudência, da moderação e da discrição. Por outro lado, ele investe contra os vícios da embriaguez, da gula, da luxúria e da preguiça.
De modo especial acentua a piedade filial e a educação das crianças. Igualmente se pode reconstituir um verdadeiro código de direito régio e de equidade judicial, reunindo-se os fragmentos dispersos que tratam dessas questões.
Em todo o livro se manifesta viva fé numa retribuição, recompensa ou castigo. Mas não existe ainda a ideia de uma vida eterna.
A região dos mortos aparece sempre (como também em Jó e nos Salmos) como um lugar de tristeza, no qual as sombras se detêm num estado mais de morte do que de vida.
A moral, tal como a lemos neste livro, poderá parecer, a uma consideração superficial, muito primitiva. De fato, os autores dos Provérbios limitaram seu interesse a normas de caráter prático. Entretanto, os sábios israelitas sabiam proclamar que a verdadeira sabedoria ultrapassava infinitamente a simples virtude da prudência. Assim é que aí se nos depara a célebre máxima: ‘‘O temor do Senhor é o começo da sabedoria’’ (1,7 e 9,10).
Essa Sabedoria só pode provir de Deus mesmo (8,22); é ela que nos faz compreender algo da justiça e dos juízos de Deus (2,5-9), como é ela também que produz a verdadeira humildade (15,33).
No livro dos Provérbios, urge saber-se espigar: haverá sempre alguma espiga a ajuntar-se. Entretanto, devemos separar cuidadosamente um feixe do outro: assim as seis exortações do sábio ao seu filho (caps. 1 – 20); as curiosas máximas numéricas do capítulo 30 e o poema sobre a mulher forte do capítulo 31.
O Eclesiastes
Esse livro apresenta-se como uma série de meditações sobre a instabilidade da vida humana, entrecortadas várias vezes por uma sorte de estribilho que indica a linha diretriz que o autor tinha em mente: “Fugacidade das fugacidades! Tudo é fugaz!”
Desconhecemos o autor, que coloca suas reflexões na boca do ‘‘Eclesiastes’’. Nesse personagem vê-se uma alusão ao rei Salomão, que a tradição judaica considerava como a personificação da sabedoria. O último redator do livro, que lhe deu a forma atual, deve ter vivido no terceiro século a.C.
Para o autor, como para seus contemporâneos, todos os homens vão, depois da morte, para um único e mesmo lugar, o sheol, ou a região dos mortos. A existência nesse lugar é descrita como uma existência sem consolações, nas trevas, sem felicidade alguma, onde nenhuma relação mais se tem com o que acontece na terra. Essas ideias sombrias a respeito da vida e da morte formam a base do pessimismo que se depreende desse escrito. Compreende-se a conclusão que ele tira desse seu modo de ver: se a perspectiva do céu é tão duvidosa, se a experiência da vida aponta tantas preocupações e desilusões, nada melhor se pode aconselhar do que fruir dos bens que Deus nos dá nesta vida e agradecer-lhe por tudo isso. Mas mesmo assim, as alegrias terrenas aparecem como incapazes de estancar a sede da felicidade de que sofre o coração do homem.
Entretanto, o autor alia a esse pessimismo um espírito de profunda religiosidade. Ele insiste na disposição sempre sábia, embora impenetrável, da Providência divina. Tudo o que há de bom na vida é dom de Deus. Um dia, o homem deverá prestar contas ao seu Criador de todos os atos praticados na terra. Essas considerações conservam seu valor para todos os tempos. A piedade é o principal meio de alcançarmos nosso destino. Toda a moral do livro resume-se nos seus últimos versículos: ‘‘Como conclusão geral, teme a Deus e observa os seus preceitos; eis aí o homem todo’’.
O Cântico dos Cânticos
Denomina-se Cântico dos Cânticos (expressão esta que significa: o mais belo dos cânticos) uma coleção de poemas que, originariamente, devem ter sido destinados às solenidades nupciais.
O amor humano – por mais estranho que isso possa parecer – foi escolhido como tema para esses poemas inspirados. O amor que une o homem e a mulher no casamento foi querido por Deus no plano da Criação: ele é em si uma coisa boa e digna de ser enaltecida. Por outro lado, as festas nupciais eram para os antigos judeus uma ocasião propícia para a manifestação de sua fé nos destinos da nação escolhida, que era considerada a esposa do Senhor. Na união dos novos nubentes viam com religiosa alegria como a aliança divina se ia perpetuando. O amor humano tornava-se a eles, portanto, em um verdadeiro símbolo da aliança de Deus com seu povo. O Cântico foi considerado e lido pelos judeus, desde a sua origem, como um cântico de amor de Deus para com seu povo. Uma comunidade que não duvida interpretar dessa forma esses poemas compreende perfeitamente que esse amor divino, assim expresso, solicita por sua vez a resposta do amor humano. O Cântico prega a fidelidade.
A Igreja cristã, estendendo ainda mais o simbolismo desses hinos, nunca cessou de ver neles uma figura do amor de Cristo para com sua Igreja, considerada sua esposa. O cântico celebra então a satisfação única e perfeita que a alma cristã encontra no seu Bem-amado.
Convém por fim mencionar a liturgia da Igreja que se utiliza das palavras do cântico para celebrar o amor da Virgem Santíssima para com seu Filho.
A Sabedoria
O conteúdo desse livro é um louvor à sabedoria divina. Na primeira parte, o autor mostra a sabedoria nas obras da vida de cada homem, sendo recompensada pela vida eterna. Na segunda parte, expõe o papel que a sabedoria representou na vida do rei Salomão. Ainda numa terceira parte, apresenta a sabedoria em ação: na Criação, na história da humanidade e, em particular, na história do povo de Deus. Ao tratar do reino de Salomão, a sabedoria é descrita como uma irradiação do Deus Altíssimo.
A finalidade do autor, que se dirige aos judeus moradores no Egito, é acautelá-los contra um duplo perigo, a saber: serem desencaminhados pela filosofia grega, e serem tentados a abandonar o culto de um Deus único. Ele quer mostrar que o conceito judaico da vida nada tem a invejar da sabedoria profana do paganismo. Ao contrário, é ela que proporciona ao homem a imortalidade. Só essa sabedoria, que tira sua origem de Deus, é um guia seguro para a nossa vida religiosa e moral, como uma salvaguarda contra a idolatria, iluminando a história de Israel e os terríveis castigos que o culto aos deuses falsos arrasta após si.
A descrição da sabedoria, tal como ela é em Deus, atinge, na segunda parte do livro, uma culminância que debalde procuraríamos em algum outro livro do Antigo Testamento. O autor refere-se à Sabedoria, envolvendo-a num atributo divino personificado; uma pessoa que pensa, que fala e que age. É ela que criou o mundo e que, como conselheira de Deus, dirige, providencialmente, o universo inteiro.
Mui provavelmente o livro da Sabedoria foi escrito em grego. Todavia, o estilo de sua primeira parte faz pensar na poesia hebraica; no restante do livro o estilo é mais livre e aproxima-se da língua grega.
O desconhecido autor apresenta-se, por vezes, falando na pessoa de Salomão, circunstância essa que levou outrora muitas pessoas a atribuírem toda a obra ao grande rei de Israel. Mas trata-se de uma ficção literária, como no livro do Eclesiastes. O autor deve ter escrito para os judeus que falavam o grego e que viviam fora da Palestina, provavelmente no Egito. Não nos é possível determinar com exatidão a data da sua composição, provavelmente durante o último século que precedeu a nossa era.
A convicção profundamente religiosa que emana de todas essas páginas já muito se aproxima da revelação do Novo Testamento. Esse livro não é citado nos Evangelhos, nem em São Paulo; mas numerosas passagens, principalmente na Epístola aos Hebreus, fazem alusões evidentes a certos trechos da Sabedoria.
Esse livro do Antigo Testamento contém as primeiras revelações sobre imortalidade da alma e o seu destino eterno, e estabelece, portanto, uma digna transição entre a Antiga Aliança e a plena revelação evangélica.
O Eclesiástico
Esse livro leva, no texto grego, o título de Sabedoria de Jesus, filho de Sirac. Na Igreja latina, foi-lhe dado o título de Eclesiástico, ou livro da Igreja, porque era utilizado com grande frequência na Igreja, para instrução dos fiéis.
A concepção da vida, tal como aparece nessas páginas, baseia-se inteiramente nos mandamentos de Deus contidos na Lei mosaica e aplicados a todas as manifestações da vida cotidiana.
O livro divide-se em duas grandes partes, com um epílogo e um duplo apêndice. A primeira parte divide-se, por sua vez, em sete séries de sentenças, começando todas elas por um elogio à sabedoria. A segunda parte subdivide-se em duas seções, contendo a primeira um cântico de louvor à sabedoria divina, que resplandece em todas as suas obras, e descrevendo a segunda parte a sábia providência do mesmo Deus, tal como aparece nas grandes figuras da história de Israel.
Trata o autor de todos os aspectos da vida humana: exortações aos maridos, às mulheres, aos pais, aos filhos, aos senhores, aos homens da lei, aos anciãos. Aí são deparados a nós pequenos tratados sobre a riqueza e sobre a pobreza, sobre o comércio e sobre a educação, sobre o modo de proceder em geral e em particular e sobre a hospitalidade. Ao lado de problemas importantes e profundos como o da retribuição do mal, lemos aí regras de boas maneiras e conselhos sobre o modo de assentar à mesa de um banquete. Todos esses assuntos são considerados sob um ponto de vista religioso. Tudo procede da lei e dirige-se para a lei. O Eclesiástico apresenta, portanto, grandes semelhanças com o capítulo 6 dos Provérbios. Particularmente notáveis são os dois trechos líricos dos capítulos 24 e 42.
Apresenta-se o autor com o nome de Jesus, filho de Eleazar, filho de Sirac. Era um escriba originário de Jerusalém. Por essa razão, o livro do Eclesiástico muitas vezes é designado simplesmente pelo nome de Sirac.
Esse livro deve ter sido escrito no ano 200 a.C. Decorria então um período agitadíssimo, devido às disputas da Palestina por parte dos reis da Síria e do Egito. Por essa época, numerosos israelitas aderiam à cultura grega. Bem se pode comparar o primeiro capítulo do Primeiro livro dos Macabeus com a introdução desse livro. O Sirácida defende o modo de viver conforme a lei nas múltiplas formas da vida social, religiosa e particular. Torna-se ele então um apelo vivo à fidelidade para com as tradições judaicas e um cântico de louvor à história de Israel, de acordo com os planos divinos. O autor considera sua obra como uma irradiação da sabedoria tradicional que a Providência suscitou em Israel. Manifesta a convicção de que alhures, pelo mundo além, não se pode encontrar uma sabedoria semelhante à do povo eleito, porque é entre esse povo que, por ordem de Deus, a sabedoria veio estabelecer-se.
O conjunto das exortações que aí lemos baseia-se nas normas da lei, no que elas contêm de eterno. Para todos os tempos conserva o seu imenso valor a descrição da criação divina, da sabedoria de Deus, de sua providência na direção dos povos e dos homens em geral. A estima da sabedoria, que excede todos os valores criados, não se liga a nenhum lugar, nem a tempo algum. A recomendação da virtude e a fuga do pecado, sob todas as suas formas, conserva pleno valor atual. Portanto, esse livro, depois de ter servido de espelho da vida de um israelita fiel, pode ser considerado como um manual do homem bem-educado, formado na escola do Evangelho.
O livro do Eclesiástico, tal como a Igreja cristã o encontrou na tradução grega em uso no tempo dos apóstolos, só foi incorporado muito mais tarde na coleção dos escritos inspirados; por essa razão, os judeus e os protestantes não reconhecem a sua canonicidade.
O texto do Eclesiástico passou por várias alterações no decorrer dos séculos. Perdeu-se o texto hebraico original. Entretanto, foram encontrados no fim do século XIX importantes fragmentos. O texto grego que possuímos é uma tradução feita pelo neto do autor, para pô-lo à disposição dos judeus egípcios, os quais na época em que ele escreveu, já não conheciam o hebraico e o aramaico. O latim da Vulgata muito se aproxima da versão grega e apresenta numerosas liberdades de tradução, diferindo, portanto, em muitos passos, do texto hebraico. Parece mesmo averiguado que o texto latino foi por vezes modificado num sentido cristão; muitas vezes foi ele glosado, sendo-lhe intercalados versículos inteiros. Nesta nossa tradução, pareceu-nos preferível ater-nos ao texto convencional latino que, em regra geral, é mais amplo que outras versões, sendo assim mais fácil tornar visíveis as tradições do tradutor latino, imprimindo-as em itálico (grifo).
OS PROFETAS
Isaías
Isaías é considerado, em geral, como o maior dos profetas de Israel.
Nascido por volta do ano 760, de uma família nobre do reino de Judá, foi chamado por Deus no ano 740 ao ministério profético, que exerceu por cerca de 50 anos.
O livro de Isaías compõe-se de duas partes muito distintas.
Os 39 primeiros capítulos, que contêm frequentes alusões a Isaías e ao seu tempo, são perfeitamente inteligíveis no ambiente dos acontecimentos dos reinados de Osias, de Joatão, de Acaz e de Ezequias (2Rs 15-20).
Os capítulos 40 a 66, ao contrário, supõem uma época muito diferente e posterior. Então, o profeta se dirigiria aos israelitas deportados, ou já reintegrados na sua pátria, como se ele vivesse no meio deles. Tal é a opinião que presentemente prevalece entre os católicos. Entretanto, cumpre notar que a maioria dos exegetas, que se manifestaram até há poucos anos, opinavam que também esses últimos capítulos deviam ser atribuídos ao próprio Isaías.
Seja qual for a solução do problema, urge que o leitor, que quer compreender com exatidão a segunda parte do livro, a leia à luz dos acontecimentos do exílio e da restauração de Israel.
Podemos considerar Isaías como o profeta da justiça. Insurge-se ele contra a idolatria e os abusos sociais que se alastravam no seu tempo; ele ameaça os ricos e os poderosos e eleva sua voz contra os hipócritas e todos aqueles que levavam vida frívola. Com grande veemência ele chama o povo ao arrependimento e à fé. Um terrível julgamento divino vai desencadear-se sobre Israel: as nações pagãs serão as executoras desse julgamento, mas também elas, por sua vez, serão castigadas e destruídas. Quanto a Israel, um ‘‘resto’’ será salvo. Todos esses oráculos estão impregnados da mais firme esperança num rei glorioso que há de vir e restaurar a ordem no mundo: o Messias, ‘‘o Príncipe da Paz’’.
Na segunda parte do livro, Isaías apresenta-se como o profeta da consolação e da esperança. Aí se nos depara um conceito majestoso de Deus, o criador e soberano Senhor, vencedor do mundo, e salvador do seu povo. É principalmente notável a série de misteriosos poemas que se referem ao ‘‘servo do Senhor’’. Não sabemos ao certo que figura daquele tempo é mencionada por esse enigmático personagem. Pensaram alguns em Ciro, rei dos persas, que reintegrou os israelitas à sua pátria; pretenderam outros interpretar esse passo como uma figura de escol do povo, esse ‘‘pequeno resto’’, ao qual o profeta tantas vezes se refere. Mas a tradição cristã sempre descobriu nesses trechos uma belíssima imagem de Jesus Cristo: porque o ‘‘servo do Senhor’’ não é apenas um chefe dedicado e amante, um mediador, um salvador, mas é chamado também de o homem das dores, título aplicado por excelência a Jesus, que salvou seu povo pelos seus próprios sofrimentos.
O capítulo 53 de Isaías pode ser considerado como o auge da profecia: aí Deus se manifesta como jamais o tinha feito. Só mesmo o Evangelho pode ser comparado a essa mensagem.
Quanto às profecias contra as nações pagãs, devemos notar: era uma ideia comum entre todos os profetas que os crimes do povo eleito seriam punidos por Deus. Senhor da História, Deus serve-se dos acontecimentos para dar uma lição aos homens. Assim é que os assírios, depois os caldeus, os egípcios e os pequenos povos vizinhos da Palestina aparecem como os instrumentos da vingança divina. Entretanto, essas nações conquistadoras serão castigadas por Deus a seu tempo e cairão sob os golpes de outras mais poderosas que elas. Serão totalmente destruídas quando aparecer o Messias. A Igreja cristã interpreta esses passos em relação à conquista das nações, que só será realizada plenamente no fim dos tempos, por ocasião da volta gloriosa de Jesus Cristo.
Entre as passagens mais célebres de Isaías notemos as seguintes: censuras a Jerusalém (caps. 1 a 5); vocação do profeta (cap. 6); o reino do Messias (caps. 9 e 11); cânticos dos resgatados (cap. 26); felicidade dos tempos messiânicos (cap. 36); anúncio da libertação (cap. 40); o servo do Senhor (caps. 42 a 49 e 55); a glória da nova Jerusalém (caps. 60 e 61); orações no tempo da angústia (caps. 62 a 64).
Jeremias
A pessoa do profeta Jeremias é atraente de um modo todo particular. Ao passo que os oráculos dos outros profetas pouco ou nada nos revelam sobre as pessoas dos seus autores, o livro de Jeremias, ao contrário, é cheio de episódios e de poemas que se relacionam com a própria pessoa do profeta, e nos conservam vários acontecimentos de sua carreira, bem como os seus sentimentos, suas lutas interiores, seus sofrimentos.
Nasceu Jeremias de uma família sacerdotal em Anatot, aldeia da Judeia, por volta de 650 a.C. O tempo de sua profecia estendeu-se por cerca de 40 anos, tomando ele a palavra pela primeira vez sob Josias, em 622, na época em que foi descoberto no Templo de Jerusalém um exemplar do livro da lei, identificado como Deuteronômio. Ele sustenta com toda a sua personalidade a reforma religiosa dessa época. Entretanto, essa mesma reforma foi de pouca duração, continuando o povo a queixar-se de Deus e do Templo do Senhor e já não praticando a justiça de acordo com a lei.
A tarefa do profeta era austera: temperamento tímido e hesitante, coração ardente e sensível, Jeremias viu-se obrigado a ser, contudo, o ‘‘profeta das desgraças’’. Essa sua missão tornou-o o objeto da ira daqueles cujos abusos e pecados ele não cessava de combater. Foi caluniado, preso e correu o risco de perder a vida. Acusavam-no de derrotismo, porque ele aconselhava aos que tinham escapado do primeiro sítio da cidade a não se revoltarem contra os caldeus, procurando asilo no Egito, o que traria consigo terrível repressão da parte dos vencedores. Ele predissera aos deportados um longo exílio de 70 anos. O rei destruiu o volume no qual estavam consignados esses oráculos. Prendem o profeta numa cisterna com o fundo cheio de lodo, de onde ele é libertado por um escravo do rei. Jeremias, sempre destemido, apesar de seu caráter tímido, continua a prever a queda de Jerusalém, mas anuncia que haveria ainda uma esperança no porvir.
Quando esse desastre sobreveio, em 586, o profeta assistiu às deportações, ficando, porém, com alguns pobres agricultores autorizados a permanecer na Palestina. Alguns deles, tomados de pânico, fogem para o Egito, levando-o consigo à força. Jeremias anuncia ainda a invasão do Egito e entrevê e prediz o fim do exílio. Morreu em Táfnis, no Egito, sem dúvida por volta do ano 586.
O sentido geral do livro de Jeremias consiste na interpretação providencial da catástrofe nacional que ele anunciou e viveu: Deus, implacável juiz, serve-se da ruína do seu povo para levá-lo, de acordo com um plano preestabelecido, ao perdão e à renovação da aliança, fruto da misericórdia e da graça.
A pessoa de Jeremias, símbolo do justo sofredor, reveste-se de excepcional importância. Tornou-se ele um prenúncio de Jesus Cristo, ‘‘o homem das dores, habituado ao sofrimento por causa dos pecados do seu povo’’. São as queixas diante das injustiças, de que ele foi vítima, que servem ainda hoje, nos ofícios religiosos da Semana Santa, para exprimir a dor e os sofrimentos internos do divino Salvador.
Eis aqui algumas passagens de relevante importância: a vocação do profeta (cap. 1); os oráculos contra os juízes infiéis (caps. 2 a 7); contra a idolatria (cap. 10); os sofrimentos e queixas do profeta (caps. 15 e 18 a 20); as ações simbólicas (caps. 19 e 24); as promessas da restauração (caps. 30 e 33); o episódio da vida do profeta (caps. 36 a 44).
Lamentações
Compõe-se esse escrito de cinco poemas ou lamentações fúnebres. Os quatro primeiros são exarados, como alguns salmos e o elogio da mulher forte (Pr 32), em forma de acróstico, começando cada estrofe por uma letra do alfabeto. O quinto é uma oração.
Foram compostos durante os anos que se seguiram à destruição de Jerusalém, em 586. Não podemos afirmar com absoluta certeza se foi Jeremias seu autor, todavia não é impossível que o tenha sido. Esse livro era lido todos os anos na comunidade judaica, no dia do aniversário da destruição do templo, e era destinado a levar seus ouvintes a reconhecer as próprias faltas e a excitá-los a uma nova confiança na misericórdia de Deus que, apesar de tantos castigos infligidos ao seu povo, permanecia sempre fiel às promessas e à aliança eterna.
Baruc
Os historiadores contemporâneos estão de acordo em não reconhecer em Baruc o mesmo personagem que serviu de secretário a Jeremias, embora lhe seja homônimo; deve ter sido um profeta posterior à restauração.
A primeira parte foi possivelmente composta em hebraico, mas só possuímos hoje o texto da tradução grega; consiste numa magnífica exortação à penitência. A segunda parte, provavelmente escrita em grego, abrange, além de um majestoso poema à sabedoria, como único meio de chegar-se a Deus, um veemente apelo à coragem, à resignação e à esperança.
Uma Carta de Jeremias aos cativos foi acrescentada, em época desconhecida, ao livro de Baruc. Parece ter sido uma paráfrase do cap. 10 de Jeremias contra a idolatria.
Ezequiel
Quando Jerusalém foi tomada pela primeira vez por Nabucodonosor, em 599, o rei, as autoridades do reino, os altos comerciantes e sete mil guerreiros foram deportados para a Babilônia. Não se tratava propriamente de um cativeiro, mas de um exílio. Receberam os deportados autorização para se estabelecerem onde quisessem, para cultivar terras, comerciar e dedicarem-se às indústrias e, por fim, para se organizarem em comunidades. O que mais lhes causava pesar não era propriamente o cativeiro, mas as saudades da pátria e da vida religiosa nacional, bem como a decepção de se verem misturados com povos pagãos. Israel conheceu nesse momento uma época de sombrio desespero (Salmo 136).
Infelizmente, sob a influência dos pagãos, o povo eleito foi-se deixando corromper e foi adotando os ritos da idolatria e os costumes depravados dos vencedores. Foi então que surgiu Ezequiel, em 593.
Enviado por Deus aos deportados, cuja vida manifestava que não tinham compreendido a lição do castigo, Ezequiel exercia no exílio a mesma missão de Jeremias, relativamente aos israelitas que permaneceram na Palestina.
Ao povo, que ainda guardava falsas esperanças, anunciou a destruição de Jerusalém. Realizou-se esta, e uma nova deportação veio aumentar o número dos exilados. Interpreta-a o profeta como um castigo divino pela infidelidade, principalmente dos chefes, que em geral deram ao povo o exemplo da corrupção. É esse o assunto dos 33 primeiros capítulos desse livro.
Mas a mensagem do profeta daí em diante muda de caráter. Ei-lo que exalta o novo Pastor do povo de Deus, anunciando a ressurreição de Israel, a restauração do templo e o restabelecimento de uma ordem de coisas na qual, sob a direção divina, reinará a justiça.
Entre os profetas, Ezequiel é conhecido pela linguagem intrépida e pelo estilo imaginativo.
A visão na qual Deus lhe revela sua missão tornou-se célebre (caps. 1 a 5). Foi-lhe dado contemplar a glória divina. Apesar da detalhada descrição que aí lemos, mal podemos representar com exatidão essa aparição divina. Com efeito, Deus não pode ser descrito. É impossível à inteligência humana compreender a divindade. Ante a glória divina toca ao homem humilhar-se sem discutir.
Celebrizou-se Ezequiel também pelas estranhas ações simbólicas, narradas nos capítulos 4, 5 e 12; são uma espécie de “histórias sem palavras”, cujo sentido é claro para os expectadores e que, aliás, o próprio profeta por vezes explica.
Terá encontrado em Ezequiel, expresso pela primeira vez, o ensinamento da responsabilidade individual. Acreditava-se então — e isso servia de escusa — que era por causa dos pecados dos antepassados que sofriam toda espécie de castigos, como o próprio cativeiro. O profeta expõe categoricamente o princípio da responsabilidade e do merecimento pessoal (14 e 18).
São deparados particularmente três trechos que podem causar espanto pelas suas expressões ousadas: os capítulos 16, 20 e 23. Para compreendê-los devidamente, urge lembrarmo-nos de que o profeta compara a união do povo eleito com seu Deus, à união de um esposo com sua esposa. Ele chama de adultério toda infidelidade para com Deus e de prostituição todo ato de idolatria.
Os capítulos 34 a 36, que se referem à restauração, devem ser lidos cautelosamente, bem como o capítulo 37, que, pela famosa visão dos ossos ressequidos, anuncia a renovação que Deus sabe operar nas almas desesperadas.
Nos capítulos 40 a 48, lemos a visão do novo templo e do novo estado judaico: devemos interpretá-los mais como um sermão do que como um plano verdadeiro. O sentido dessa descrição consiste em salientar que o santuário e o culto divino centralizarão toda a vida nova.
Daniel
Daniel é um israelita levado à Babilônia entre os deportados por Nabucodonosor. Jovem, era possuidor de uma fé ardente e de um patriotismo violento.
Ele deve ser tido não tanto como autor do livro que traz seu nome, mas como seu herói principal. Com efeito, esse escrito foi redigido em três línguas: hebraico, grego e aramaico; ora, os dois últimos idiomas não eram ainda utilizados no tempo em que o livro coloca o profeta. Seu redator, que escreveu certamente no século II a.C., serviu-se de documentos anteriores, que podem remontar até a própria época de Daniel.
O livro de Daniel salienta-se como um dos mais curiosos entre os livros proféticos da Bíblia: primeiro abrange diversas narrações relativas ao profeta no meio dos habitantes da Babilônia. Vem em seguida uma série de estranhas descrições, imaginativas e solenes, de misteriosas visões atribuídas ao mesmo profeta. Serve-se o autor do processo, chamado estilo apocalíptico, para delinear aos seus leitores, sem pretender manifestá-los, sob imagens veladas e ao mesmo tempo transparentes, os acontecimentos de que são testemunhas, nos quais poderão descobrir perspectivas de um futuro que constitui a finalidade de sua mensagem. Por fim, o livro de Daniel abrange, em apêndice, três narrações: a de Suzana, a de Bel e a do dragão, que São Jerônimo considerava como contos destinados à edificação moral.
De uma extremidade à outra dessa profecia, predomina a ideia da expectativa pelo Reino de Deus; mas urge descobri-la, porque é expressa quase sempre veladamente.
Já as narrações do começo do livro apresentam Daniel e seus companheiros como homens cuja inflexível fidelidade se torna um símbolo da resistência dos crentes ao poder dos perseguidores. As páginas obscuras que aí lemos são por vezes explicadas pelo próprio livro que, como nos capítulos 2 a 8, nos ensina a ver nas grandes visões descritas (o colosso de pés de argila, os quatro animais, o bode…) um modo velado de representar os grandes impérios que se sucederam no Oriente, desde os tempos do exílio até a época em que o autor vivia. Portanto, esse livro devia servir de consolação e de animação aos israelitas que sofriam a opressão por parte de Antíoco Epífanes (176-163), apresentando-lhes esse último reino terrestre como prelúdio de um ‘‘Reino que jamais será destruído’’ (2,44).
Lança o profeta os seus olhares sobre perspectivas eternas, revelando, sucessivamente, a preparação do Reino de Deus pela restauração religiosa do povo eleito, e a própria realização desse Reino, bem como sua consumação no fim dos tempos. Essas três fases são descritas sem que ele atenda à sucessão cronológica, tanto assim que, à primeira vista, poder-se-ia confundir a restauração imediata, que o profeta anuncia para o fim das perseguições de Antíoco, com aquela que todos os homens esperam para o fim dos tempos, ou com aquela que o Messias devia realizar na terra. O profeta deixa os leitores, propositalmente, na incerteza quanto ao tempo. Seu escopo é excitar neles o desejo e as esperanças da promessa com uma viva confiança na certeza de sua realização.
Esse Reino, o Reino de Deus anunciado pelos profetas, é o que será proclamado e realizado por Jesus Cristo.
Não pode haver dúvida, entretanto: além de anunciar a vinda do Reino de Deus, Daniel subentendeu também a segunda vinda do Senhor no fim dos tempos. Jesus cita expressamente uma passagem de Daniel 9,27 e também em Ezequiel 39,11-29 no discurso sobre a destruição de Jerusalém e o fim do mundo (Mt 24,15). Guarda, portanto, ainda hoje a profecia de Daniel toda a sua atualidade para os leitores modernos: os fiéis devem contar com toda espécie de provações e, no meio delas, devem alimentar absoluta confiança na vinda do seu divino Salvador.
Notáveis e interessantes são as seguintes passagens: o sonho da estátua (cap. 2); o festim de Baltazar (cap. 5); a fossa dos leões (cap. 6); a oração de Daniel (cap. 9); os tempos messiânicos (cap. 12); a história de Suzana (cap. 13).
Oseias
O profeta Oseias era oriundo do reino do Norte. Seu ministério parece ter começado no fim do reino de Jeroboão II (787 a 746). Exerceu ele esse mesmo ministério profético até o reinado de Manaém (745 a 735). Toda a sua profecia é uma descrição das infidelidades de Israel para com seu Deus; pela primeira vez na Bíblia, a união de Deus com seu povo é comparada por ele com o noivado. Essa imagem será empregada de novo por quase todos os profetas que o seguirão. Oseias insiste no caráter moral dos castigos que ele anuncia, e põe um acento particular sobre o amor de Deus para com seu povo.
Joel
O profeta Joel só nos é conhecido por seu poema. Sabe-se que ele profetizou no reino de Judá, e sobretudo em Jerusalém, de onde era originário. Ele mostra o conhecimento do culto, o amor do povo e a cultura religiosa que se espera encontrar num membro da classe sacerdotal.
Por falta de indicações cronológicas e de indícios decisivos, os autores discordam quanto ao tempo em que ele viveu; mas, segundo o parecer de muitos, terá ele vivido depois do exílio. Muitas circunstâncias levam a pensar que ele conheceu o livro de Amós.
Amós
Amós era pastor em Técua, localidade vizinha de Belém. Camponês de alma religiosa, no meio da prosperidade do reino de Jeroboão I, ele só prega ameaças e anuncia castigos. Insurge-se contra as injustiças sociais que devastam a Samaria: opressão dos pobres e corrupção dos juízes. Insiste no castigo do reino do Norte, mas dá a entender que também o reino de Judá será punido por sua idolatria. A perspectiva messiânica é descrita por ele sob a imagem de uma extraordinária prosperidade agrícola.
Abdias
Parece que a composição do oráculo desse profeta, em parte desconhecido, deve ser fixada na época do exílio. O oráculo é dirigido contra Edom, que é censurada por alegrar-se com a ruína de Jerusalém: a vingança de Deus vai atingi-la da mesma forma que aos outros pagãos.
Jonas
O livro de Jonas é colocado entre os profetas, porque conta as aventuras de um profeta que tem esse nome. No Segundo livro dos Reis (14,25), fala-se de um profeta Jonas contemporâneo de Oseias e de Amós, mas não foi este quem escreveu o livro de Jonas. O livro em apreço foi redigido depois do exílio da Babilônia.
Muitos perguntam a si mesmos se é preciso tomar à letra a narrativa maravilhosa de Jonas. Com São Gregório Nazianzeno, cremos que é preciso ver aí um ensinamento religioso velado sob as formas de uma parábola.
Esse ensinamento é muito importante: o envio de Jonas a Nínive significa que Deus chama ao perdão não somente os judeus, mas também os pagãos. A recusa de Jonas em ir até lá significa que os judeus são ciosos de seus privilégios. Isso é claramente expresso no último capítulo, quando Deus mostra a Jonas que, se ele se preocupa com uma árvore que o sol secou, não é de estranhar que Deus se preocupe com todo um povo que deseja converter-se.
Miqueias
O profeta Miqueias era judeu originário de Moreset, aldeia vizinha de Hebron. Foi contemporâneo de Isaías. Profetizou a ruína de Samaria, sobrevinda em 722, e anunciou ao reino de Judá um castigo semelhante. Sabe-se, por uma passagem de Jeremias (26,18-19), que sua pregação causou profunda impressão em Jerusalém. É possível que os oráculos dos capítulos 4 e 5 contenham um quadro da restauração messiânica, relacionando-se com a época da reforma religiosa de Ezequias.
Naum
A vida desse profeta é desconhecida. Ignora-se onde se situava a aldeia de Escosh, de onde ele era originário. O oráculo que nos é conservado a esse respeito descreve, antes de tudo, o julgamento divino que se exerce no mundo e, em seguida, manifesta uma alegria transbordante com a ruína de Nínive (608).
Sofonias
Sofonias exerceu seu ministério sob o reinado de Josias, por volta do ano de 625. É um profeta justiceiro que anuncia o dia do Senhor sob a figura de um sacrifício ritual, em que todos serão castigados, salvo os que praticam a justiça, a humildade e a obediência à Lei de Deus. Ao anúncio do castigo sucede uma perspectiva messiânica: o nome de Deus será glorificado entre os pagãos, e Israel, purificado pela prova, será restaurado na amizade divina.
Habacuc
Este oráculo parece pertencer à época que se seguiu à batalha de Carquêmis, em 605. Anuncia a invasão iminente dos caldeus. Habacuc é um profeta filósofo que parece ter sido um dos primeiros israelitas a pensar no problema do mal. A solução que ele propõe é que Deus, no final, salvará o justo, punindo o invasor. Então, a terra inteira ficará cheia do conhecimento de Deus.
Ageu
Ageu é mencionado em Esdras 5,1 e 6,14. O livro que traz seu nome foi provavelmente redigido por um discípulo, que a ele juntou fragmentos em que Ageu é nomeado na terceira pessoa. Este exerceu seu ministério em Jerusalém, por volta do ano 520, quando se reconstruía o templo.
Zacarias
Contemporâneo de Ageu, esse profeta estende seu olhar sobre um horizonte mais vasto. Sua linguagem é tenebrosa e simbólica: um anjo transmite-lhe os oráculos divinos. Ele prega uma reforma moral, ao mesmo tempo que exorta o povo a reconstruir o templo. Vê em Zorobabel o eleito de Deus, dando-lhe o título messiânico de Germe. O escrito contém uma importante descrição do reino pacífico do Messias, e uma espécie de apocalipse, anunciando a ruína dos inimigos de Jerusalém e a conversão das nações.
A segunda parte do livro (caps. 9 a 14) representa uma situação histórica diferente, que parece referir-se às últimas décadas do século IV a.C.
Malaquias
É comumente admitido que os oráculos de Malaquias tenham sido pronunciados nos anos que precederam imediatamente a vinda de Neemias (444). Esse profeta fala do amor de Deus por seu povo, do qual é uma prova o recente castigo de Edom. Mas explica também por que Deus não é mais generoso em bênçãos: negligências no ministério sacerdotal, no respeito à santidade do matrimônio (casamentos mistos e divórcios), no pagamento dos dízimos. A pregação de Malaquias preparou a grande reforma de Neemias.
INTRODUÇÃO PARTICULAR AOS LIVROS DO NOVO TESTAMENTO
Os Evangelhos
A palavra Evangelho é de origem grega e significa a Boa-nova. Os Evangelhos são escritos que contam a boa-nova da vinda entre os homens daquele que se fez “filho do homem”, a fim de que nos possamos tornar “filhos de Deus”.
Mas antes de ser um livro, o Evangelho foi uma palavra pregada: antes de ser lido, ele foi ouvido. Como o Senhor Jesus tinha falado, assim falaram os apóstolos depois de sua morte. Mas eles não se contentaram em transmitir sua doutrina; acrescentaram-lhe um testemunho sobre sua vida e suas ações: “o que ele fez, o que ele ensinou”, como diz o livro dos Atos dos Apóstolos.
O ensinamento dos apóstolos se inseria no quadro seguinte: 1. a pregação de João Batista; 2. a missão de Jesus na Galileia; 3. a missão de Jesus na Judeia e em Jerusalém; 4. sua paixão, sua morte e sua ressurreição. Esse ensinamento foi em breve consignado parcialmente por escrito, para que fosse conservado com fidelidade.
É esse o quadro em que se amolda a narrativa dos três primeiros evangelistas. Mateus, Marcos e Lucas, dos quais um somente era apóstolo de Jesus. É certo que essas três redações não são as únicas que foram compostas. Mas são as únicas que nos foram conservadas. Lucas faz expressamente alusão aos documentos dos quais ele se serviu para redigir o seu texto. É verossímil que tenham existido, desde os primeiros anos que se seguiram à morte de Jesus, várias coleções de palavras do Salvador (como o Discurso sobre o monte, caps. 5, 6 e 7 de Mateus), ou narrações propriamente ditas (como a da Paixão). Esses três primeiros relatos, feitos num mesmo plano, foram chamados Evangelhos sinóticos, porque seu conteúdo pode ser abraçado de um só olhar, distribuindo-o em três colunas paralelas.
Se os Evangelhos sinóticos se assemelham a ponto de apresentarem às vezes uma reprodução textual de certas narrativas, nem por isso deixam de ter entre si grandes diferenças, que destacam a originalidade dos seus autores.
Mateus, cujo verdadeiro nome é Levi, coletor de impostos antes de ter sido chamado pelo Senhor para fazer parte do colégio apostólico, redigiu seu Evangelho em aramaico (dialeto do hebraico), segundo uma antiquíssima tradição, no ano 60. Esse texto, não conservado, foi depressa traduzido para o grego. O tradutor, em certos lugares, parece que se serviu do texto de Marcos.
Marcos é o sobrenome de João, primo de Barnabé, do qual se fala no livro dos Atos dos Apóstolos 12,12. É um discípulo de Pedro e companheiro de Paulo em sua primeira viagem missionária. Seu Evangelho representa um apanhado dos ensinamentos de Pedro em Roma, pouco antes de 64. As minúcias de alguns detalhes nos garantem que há nele um testemunho direto da vida e da atividade de Jesus.
Lucas é de origem grega. É também um companheiro das missões de Paulo. Lucas escreveu também os Atos dos Apóstolos pouco antes de 68. Seu Evangelho é, pois, anterior a essa data. Embora não tenha ele sido testemunha ocular dos acontecimentos, seu livro é digno de crédito por causa do cuidado que teve o autor em documentá-lo. Ele utilizou certamente o texto de Marcos e o de Mateus.
O Evangelho de João deve ser apresentado à parte. Seu autor é o apóstolo João, irmão de Tiago, filho de Zebedeu. Ele foi um dos mais íntimos discípulos de Jesus, a quem o Salvador confiou o cuidado de sua mãe no momento de sua morte. Por várias vezes ele designa discretamente a si mesmo pelas palavras: “o discípulo que Jesus amava”. João compôs seu Evangelho, seja em Antioquia, seja em Éfeso, nos últimos anos do primeiro século, mais de trinta anos após a redação dos três primeiros.
Ele não escreve para os pagãos, mas para os cristãos, que têm ouvido já numerosas objeções, e lutado para defender a fé contra doutrinas estranhas. Com uma narrativa original, completando a de seus predecessores, ele quer mostrar a divindade manifestando-se aos homens na pessoa de Jesus. Nele, ele quer mostrar o Filho de Deus, sofredor e glorificado. Apresenta-o como “a água da vida eterna”, “o pão vivo descido do céu”, “a luz do mundo”, “o bom pastor”, “o caminho, a verdade e a vida”, “a vida eterna”. Ele quer mostrar que Jesus, que era a “Luz”, não foi recebido pelos judeus, ficando desconhecido mesmo dos seus; e que, morto por aqueles que o rejeitavam, ele se tornou, em sua ressurreição, a manifestação gloriosa de Deus. A vida de Jesus é um dom que Deus faz aos homens, os quais poderão aceitá-lo ou rejeitá-lo.
João conta não somente fatos, gestos e discursos de Jesus, mas fala-nos também de sua experiência pessoal junto ao Mestre: ele diz-nos o que Jesus é para o crente.
Os Evangelhos constituem, pois, um documento inestimável sobre a vida e o ensinamento de Jesus. Tem-se muitas vezes objetado que eles não são perfeitamente concordantes. A resposta a dar a essa objeção é que as diferenças só se referem a elementos acessórios e a detalhes.
Essas diferenças, por outra parte, são devidas ao fato de que os evangelistas não pretendem fazer da vida do Senhor uma narrativa propriamente histórica. Os Evangelhos são escritos religiosos, doutrinais, destinados a alimentar a fé e a comunicá-la, fazendo conhecer a pessoa de Jesus. Cada autor, ao escrever, tinha seu ponto de vista particular.
Mateus escreve na Palestina para leitores judeus; seu texto se particulariza pela abundância de citações do Antigo Testamento.
Marcos quer apresentar Jesus aos pagãos, fazendo notar sobretudo o que havia de extraordinário e de valor probatório de sua missão nos milagres por ele operados.
Lucas, escrevendo também para os pagãos, tem a visível preocupação de apresentar Jesus sob um aspecto mais atraente e comovedor, fazendo notar, antes de tudo, a bondade e a misericórdia do Salvador.
João procura mostrar aos seus leitores a divindade de Jesus e revelar-lhes um pouco de sua realidade invisível, mas conservando o cuidado de apresentá-lo como um homem no concreto de seus atos e de seus discursos.
Malgrado todas essas diferenças, a Igreja tem sempre o vivo sentimento de que não houve jamais senão um Evangelho, uma só Boa-Nova de salvação, mas apresentada sob quatro formas: segundo Mateus, segundo Marcos, segundo Lucas e segundo João.
Os Atos dos Apóstolos
Os Atos dos Apóstolos formam a sequência do terceiro Evangelho, e foram escritos pelo mesmo autor, Lucas, que, para redigi-los, utilizou tradições escritas e orais e escreveu, numa parte importante de sua narrativa, suas próprias memórias.
Os Atos contam os acontecimentos que marcaram o nascimento da Igreja primitiva: a ascensão de Jesus, o Pentecostes, a primeira pregação em Jerusalém e na Palestina; em seguida, a conversão de Paulo e suas viagens missionárias através da Ásia Menor e da Grécia, sua prisão, seu processo e sua transferência para Roma. A narrativa termina bruscamente, sem falar da libertação do apóstolo e de suas viagens antes do martírio.
O livro dos Atos, em sua primeira parte, insiste antes de tudo na influência do Espírito Santo sobre o desenvolvimento das primeiras comunidades cristãs.
Na segunda parte, ele se restringe a mostrar como Paulo, seguindo nisso o exemplo de Pedro, é o grande realizador da entrada em massa dos pagãos na Igreja.
A leitura dos Atos dos Apóstolos – aliás fácil e atraente – é indispensável para uma boa inteligência das Epístolas de São Paulo.
As Epístolas de São Paulo
Para bem compreender as cartas de São Paulo, é preciso colocá-las em sua ordem cronológica e situá-las na narrativa dos Atos dos Apóstolos.
As duas aos Tessalonicenses são as mais antigas. Elas devem ter sido escritas por volta do ano 50 depois de Cristo. Na primeira, o apóstolo lembra aos fiéis de Tessalônica com que desinteresse ele lhes pregou o Evangelho (caps. 1 e 2): fala-lhes da alegria que lhe causa o pensamento da fidelidade deles e da esperança que tem ele de vê-los progredir sempre mais (cap. 3). Convida-os a se mostrarem firmes e encoraja-os a viverem na esperança, falando-lhes da ressurreição dos mortos (caps. 4 e 5). Na segunda, ele previne seus leitores contra as falsas ideias relativas ao retorno glorioso do Senhor, que então se figurava muito próximo (caps. 1 e 2). Convida os fiéis a porem toda sua confiança em Deus, para que se fortaleçam e sejam preservados do demônio, e procura ajudá-los a evitar a ociosidade (cap. 3).
O motivo da Epístola aos Gálatas foi o seguinte: alguns judeus cristãos queriam obrigar os pagãos neoconvertidos a se conformarem à antiga lei religiosa judaica. O apóstolo protesta contra esse particularismo.
Nessa epístola (cuja data é controvertida, colocando-a alguns em 48 e outros mais ou menos em 56), ele conta como foi chamado ao apostolado pelo próprio Jesus, e afirma que só há um Evangelho autêntico, aquele que foi anunciado com unanimidade por todos os outros apóstolos (caps. 1 e 2). Mostra em seguida a conformidade de sua doutrina com as promessas do Deus de Abraão, que foi “justificado pela fé” (caps. 3 e 4). Finalmente, expõe o que é a liberdade cristã e a vida do fiel sob a conduta do Espírito de Deus (caps. 5 e 6).
A Epístola aos Romanos (que se pensa geralmente ter sido escrita no ano 57) desenvolve ainda esse ponto de vista num magnífico comentário doutrinal, cujas ideias principais são: caps. 1 a 3: o estado de pecado em que se encontram os homens e a impossibilidade de se salvarem com seu próprio mérito; caps. 4 a 6: a salvação que Deus tinha dado pela fé a Abraão ele a concede agora a todos os homens pela fé em Jesus Cristo; caps. 7 e 8: a transformação operada por Deus no fiel pelo poder do Espírito Santo, e o dom inestimável que Deus dá aos homens por amor; caps. 9 a 11: exame da missão do povo hebreu, depositário das promessas, infiel à sua vocação, mas chamado a uma conversão futura. Numa segunda parte, caps. 12 a 15, o apóstolo expõe os fundamentos de uma vida moral verdadeiramente cristã, na qual descreve os deveres dos cristãos para com seus adversários, as autoridades; recomenda a tolerância e a condescendência mútua na caridade.
A Primeira aos Coríntios é dirigida aos fiéis de uma comunidade em que já reinavam disputas e abusos. Ela é escrita de Éfeso, por volta do ano 55. O apóstolo começa por pregar a união, dando como motivo de sua atitude a bela doutrina sobre a humildade que nos ensina a cruz de Jesus (caps. 1 a 3); lembra seus direitos à afeição dos fiéis de Corinto (cap. 4); protesta contra os escândalos sobrevindos na comunidade: processos judiciais entre os fiéis, imoralidade; e aproveita a ocasião para expressar sua opinião sobre o casamento e a virgindade (caps. 5 a 7); examina o que se deve fazer com as carnes provenientes dos sacrifícios pagãos aos ídolos (caps. 8 a 10); trata do traje das mulheres na Igreja e da celebração da comunhão (cap. 11); dá conselhos a respeito dos dons espirituais, escrevendo então uma célebre passagem sobre a caridade (caps. 12 a 14); fala da ressurreição dos mortos (cap. 15); e, enfim, apela para a generosidade de seus leitores em favor da comunidade de Jerusalém.
Depois dessa epístola deve-se colocar uma carta aos mesmos destinatários, atualmente perdida, à qual alude aquela que chamamos de Segunda aos Coríntios. Nesta, o apóstolo defende-se de seus contraditores, primeiro de um modo geral, defendendo os direitos dos apóstolos, e em seguida justificando-se pessoalmente de todas as acusações de que ele fora objeto por parte dos fiéis de Corinto.
As epístolas aos Efésios, aos Filipenses e aos Colossenses são chamadas “epístolas do cativeiro” porque foram escritas durante uma detenção que sofreu o apóstolo em Éfeso e em Roma, em 60-62. Nessas epístolas (sobretudo nas epístolas aos Efésios e aos Colossenses, que têm o mesmo plano), São Paulo trata do “mistério do Cristo na Igreja”, e junta, em uma segunda parte, uma série de conselhos morais dirigidos aos fiéis que vivem a nova vida de Jesus Cristo. A Epístola aos Filipenses, que tem um caráter mais pessoal, é notável pelas múltiplas expressões de alegria que contém. Quanto à Epístola a Filêmon, é mais um bilhete que uma carta, e dirige-se a um rico cristão de Colossos, cujo escravo fugitivo viera buscar proteção junto ao apóstolo. Este implora do senhor irritado o perdão para o escravo arrependido.
As epístolas chamadas “pastorais” – duas a Timóteo, uma a Tito – foram escritas fora do quadro que nos oferece a narração dos Atos dos Apóstolos. Elas devem ser situadas durante as últimas viagens que fez o apóstolo, depois de sua provável libertação, em 62.
TIMÓTEO, oriundo de Listra, na Lacaônia, é filho de pai grego e de mãe judia. É discípulo de Paulo e seu companheiro de viagem. A seguir é colocado à frente da comunidade de Éfeso. A Primeira a Timóteo é uma carta que visa a lembrar conselhos já recebidos e propor um programa de vida concernente aos homens, às mulheres, aos bispos e aos diáconos (é o primeiro índice histórico que temos de uma hierarquia na Igreja). Depois de ter combatido uma falsa concepção de mortificação, ele dá enfim conselhos sobre o procedimento a ser mantido com as diversas categorias de fiéis: as viúvas, os anciãos e os escravos.
TITO é também um grego, colaborador de Paulo. Este lhe escreve para lhe dar conselhos sobre a organização das comunidades da ilha de Creta. Esses conselhos são semelhantes aos da Primeira Epístola a Timóteo.
Enfim, a Segunda a Timóteo é uma carta em que o apóstolo, novamente prisioneiro e pressentindo já o martírio, dá aos seus discípulos suas últimas recomendações. É quase um adeus; tudo respira uma profunda emoção nessa carta.
A Epístola aos Hebreus deve ser mencionada à parte. Embora reflita as ideias mestras de São Paulo, ela não parece, entretanto, ter sido escrita por sua mão, tão diferente é o seu estilo das outras.
A carta é dirigida a uma parte dos judeus convertidos que sofriam por terem de abandonar o culto do templo e da sinagoga, ao se tornarem cristãos. A Epístola aos Hebreus estabelece, mediante uma sólida argumentação, partindo da Lei de Moisés, que o Evangelho não somente contém toda a substância do culto israelita, mas que também é a realização efetiva daquilo que esse culto só possuía em imagem: 1. Jesus é Filho na casa de Deus, onde Moisés não passava de servo (caps. 1 a 4); 2. Jesus foi um sacerdote maior que Aarão (cap. 5); 3. Jesus é maior que Melquisedec (caps. 6 e 7); 4. o céu em que Jesus nos introduz é incomparável ao templo do antigo culto (cap. 8); 5. Jesus, oferecendo-se a Deus em seu sacrifício sangrento, torna inúteis todos os sacrifícios do culto mosaico (caps. 9 e 10; 6. Os heróis do Antigo Testamento não obtiveram de Deus o cumprimento de todas as promessas (cap. 11); nós é que seremos os verdadeiros beneficiários dessas promessas, contanto que sigamos as pisadas de Jesus (cap. 12).
As Epístolas Católicas
Tal é o nome que se dá aos sete escritos que se apresentam sob a forma de cartas, dirigidas não a uma comunidade particular, mas a um conjunto de Igrejas.
A Epístola de Tiago é de fato obra de Tiago, “irmão do Senhor”, do qual São Paulo fala na Epístola aos Gálatas (2,6-12) e que presidia, como bispo de Jerusalém, a importante reunião dos apóstolos em Jerusalém, no ano 49. Sua carta é toda penetrada do espírito do Sermão da Montanha: ela só contém conselhos para a vida moral: piedade, justiça e caridade. É um verdadeiro guia de virtudes para o cristão fervoroso.
A Primeira de Pedro é uma carta escrita em estilo tão semelhante ao de São Paulo, que se supõe redigida por Silvano, discípulo de Paulo, que se tornara colaborador de Pedro, e que é mencionado nessa carta, no cap. 5,12. Essa carta é notável pelo seu ensinamento sobre a alegria do cristão batizado e a união dos cristãos em Jesus Cristo (caps. 1 e 2). Dirigida a cristãos que sofrem por sua fé, a carta lembra-lhes o exemplo da Paixão de Cristo (cap. 3), exortando-os à santidade e à prática de todas as virtudes correspondentes aos seus estados.
A Segunda de Pedro, que parece ter sido redigida por outro secretário do apóstolo aproxima-se muito estreitamente da Epístola de Judas. Esses dois escritos têm por principal objeto a refutação de falsas doutrinas que alguns falsos profetas de vida dissoluta começavam a semear. São um encorajamento premente à fidelidade e ao amor de Deus.
Restam as três de João, que datam do fim do primeiro século, e têm por autor o apóstolo que Jesus amava. A ideia central da primeira é: Deus é amor e luz. Em consequência, o cristão deve conduzir-se como filho da luz: fugir da concupiscência, guardar os mandamentos, sobretudo o da caridade, e arrepender-se sinceramente, se lhe acontecer cair em pecado.
As duas outras cartas (antes, bilhetes) são dirigidas: a primeira, a uma comunidade da Ásia (velada sob o nome misterioso de Kyria, “a eleita”); e a outra, a Gaio; tratam ambas de questões mais particulares.
O Apocalipse
O Apocalipse (palavra grega que significa revelação) é obra do apóstolo João, que o escreveu no fim de sua vida, mais ou menos no ano 100, sob a forma de uma carta dirigida às Igrejas da Ásia Menor.
Esse livro é considerado pela maioria dos leitores como o mais difícil de compreender e o mais misterioso de toda a Bíblia. Ele é, com efeito, bastante enigmático, mas sua interpretação pode tornar-se mais clara, se se levar em conta, de um lado, o gênero literário utilizado pelo autor e, de outro, a circunstância em que a obra foi escrita.
A situação dos cristãos da Ásia era, naquela época, das mais críticas. As perseguições já tinham começado. Por outro lado, muitos cristãos, que esperavam uma próxima libertação pelo retorno glorioso do Cristo, verificavam com tristeza que esse retorno demorava e que seu termo era quase indefinidamente adiado. Tomados de angústia, começavam a perder a esperança de encontrar um dia a independência religiosa.
O apóstolo João, fazendo de seu livro uma mensagem de reconforto e de encorajamento e, ao mesmo tempo, um manifesto contra o paganismo reinante, quer anunciar aos seus leitores a inevitável oposição do mal e do bem sobre a terra, e predizer a vitória de Deus, decisiva e certa, embora realizada no sofrimento e na morte. Para esse fim, ele lança mão de um recurso literário muito usado entre os judeus desde há dois séculos aproximadamente, do qual se pode ver um exemplo no livro de Daniel. Esse gênero literário foi chamado gênero apocalíptico, porque apresenta aos olhos do leitor uma série de visões, ou revelações muito simbólicas, tendo um sentido oculto. Não se trata de dar uma descrição antecipada de acontecimentos futuros, mas de apresentar uma mesma realidade sob vários símbolos diferentes. Essas visões se supõem outorgadas a um personagem que, dessa maneira, recebe comunicação das intenções divinas sobre os destinos do mundo. Tudo isso é feito numa linguagem intencionalmente figurada e misteriosa, para provocar uma atenção mais viva no leitor.
Sua leitura será menos desconcertante, se desde o começo for indicado o simbolismo de várias dessas imagens empregadas, por exemplo:
O cordeiro simboliza o Cristo; a mulher, a Igreja cristã; o dragão, as forças hostis ao Reino de Deus; as duas feras (cap. 13), o império romano e o culto imperial; a fera (cap. 17) simboliza Nero; a Babilônia, a Roma pagã; as vestes brancas, a vitória; o número 31/2, coisa nefasta ou caduca.
Entretanto, esses símbolos não são exclusivos: o Cristo é às vezes mostrado como o “Filho do Homem” ou um “cavaleiro”.
O Apocalipse não deve, portanto, ser tomado como uma história contemporânea escrita no “tempo futuro” (verbo); ele não é tampouco uma revelação clara e definitiva do futuro: é uma mensagem sobrenatural (velada em símbolos, representando tanto o passado, como o presente e o futuro), concernente a um período indefinido que separa a ascensão de Jesus de sua volta gloriosa. Ele anuncia aos fiéis a impossibilidade de escapar à luta e ao sofrimento, às perseguições e ao fracasso aparente no plano terrestre, à realidade da salvação que lhe será concedida no meio de suas obrigações, e à vitória final, obra de Cristo ressuscitado que venceu a morte.
Conclusão
A revelação de Deus na Bíblia não envolve uma garantia científica de tudo o que nela se encontra. É inútil pedir à Bíblia uma explicação dos seis dias da Criação ou da maneira como podiam falar os animais, como por exemplo no caso da jumenta de Balaão. Esses dados não são em si revelações, mas tradições que as contêm.
A história mesma, tal como é contida na Bíblia, não é tampouco uma revelação. Mesmo aquele que aprendeu de sua leitura a sucessão dos reinos em Israel, os costumes dos antigos judeus, e até mesmo o cumprimento das profecias do Antigo Testamento no Novo, pode ainda passar ao lado da verdadeira mensagem bíblica.
A escolha que se pode fazer de certas passagens favoritas, edificantes ou comoventes, não constitui tampouco uma verdadeira leitura da Bíblia.
Essa verdadeira leitura deverá sempre ter em vista a finalidade primária de toda a Escritura Sagrada que é anunciar Jesus Cristo e dar testemunho de sua pessoa. Para aqueles que viviam no Antigo Testamento só se tratava ainda de um Salvador desconhecido, que viria. Para nós trata-se de um Salvador que “habitou entre nós”, e cuja presença espiritual vai se perpetuar até o fim dos tempos, isto é, até o seu retorno glorioso.
A Bíblia não entrou, pois, em caducidade. Ela diz-nos respeito hoje como para além dos séculos. Entramos em contato com aquele mesmo Senhor que tinha escolhido Abraão, que havia eleito o povo de Israel, livrado os hebreus do Egito, e santificado os homens pela morte de Jesus Cristo. Como Deus não tem mudado em seu modo de proceder, podemos concluir que somos todos nós, tanto individualmente como na Igreja, escolhidos, eleitos, libertados e santificados pelo nome desse mesmo Jesus Cristo, que os dois Testamentos apontam: o Antigo, como sua esperança; o Novo, como seu modelo; ambos, como seu centro.