Alguns anos atrás, em Ratisbona, o Papa Bento XVI levantava a sua voz contra a violência no mundo muçulmano. Embora a mídia reprovasse o seu discurso, o tempo tratou de dar-lhe razão. Suas palavras nunca foram tão atuais. O Papa foi um profeta.
No dia 12 de setembro de 2006, durante uma Aula Magna na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, o Papa emérito Bento XVI fazia um dos mais importantes discursos de todo o seu pontificado. Diante de representantes das ciências, ele convidava as diferentes culturas e religiões do mundo a um diálogo entre a fé e a razão, bem como à superação da violência e da coação em matéria religiosa. “Deus não se compraz com o sangue”, dizia o Santo Padre, na ocasião, citando um imperador da Idade Média. “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus.”
Os eventos que vieram em seguida, no entanto, pareciam indicar um desastre. As palavras de Bento XVI foram mal interpretadas no mundo islâmico e, como consequência, extremistas atacaram igrejas na Palestina, uma religiosa italiana foi assassinada na Somália e um padre foi cruelmente decapitado no Iraque: o caos.
Para alguns jornalistas e “especialistas” em religião, não restava dúvidas de que o Papa tinha cometido uma “gafe” – e, até agora, foi mais ou menos essa a imagem que ficou para o mundo. O Papa emérito tinha trocado os pés pelas mãos, causa finita.
Nesta semana, depois de um atentado de radicais muçulmanos à cidade de Paris – que já contabiliza mais de 130 mortos –, foi impossível não lembrar de Ratisbona.
Na verdade, desde o ano passado, com a ascensão do chamado Estado Islâmico, o discurso de Bento XVI começou a ganhar uma atualidade fora do comum, quase profética. Cristãos cruelmente decapitados e crucificados – simplesmente por serem cristãos –, mulheres sequestradas e violentadas sexualmente várias vezes ao dia, crianças mortas sem nenhum sinal de piedade constituem apenas alguns dos itens desse “quadro de horrores” pintado (com sangue) pelos guerreiros do ISIS – um quadro que põe a humanidade em sobressalto e faz de Ratisbona uma mensagem absolutamente obrigatória para os dias de hoje.
Em sua mensagem, o Papa Ratzinger chama o mundo das ciências e das religiões a uma reconciliação. “Fé e razão”, diz ele, não são contrárias entre si, mas devem andar juntas. Para provar o seu ponto, Bento cita o início do prólogo do Evangelho de São João, que diz: “No princípio, era o Verbo”. Falando da contribuição da filosofia grega para o desenvolvimento do pensamento cristão, ele explica que a palavra “λόγος” ( logos), aqui utilizada pelo Evangelista, significa, literalmente, “razão”. Assim, na fé cristã, Deus aparece como a própria Razão, um ente dotado de razoabilidade.
As conclusões desse pensamento, traçadas por um imperador bizantino medieval, Manuel II Paleólogo, são evidentes:
“Não agir segundo a razão (‘σὺν λόγω’) é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente, e não da violência nem da ameaça… Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa.“
Nisso consiste a essência da fala de Bento XVI, a “afirmação decisiva” de toda a sua argumentação. Para ele e para Manuel II, assim como para todos os cristãos, está bem claro: a fé, separada da razão, conduz ao fundamentalismo e à violência. A pergunta a ser feita é se isso está igualmente claro para os muçulmanos, ou se, ao contrário, a sua visão “absolutamente transcendente” de Deus o destaca de todas e quaisquer categorias humanas, incluindo a própria razoabilidade.
Hoje, com as ameaças do Estado Islâmico tomando proporções mundiais, está mais do que evidente a urgência e a importância de questões como essa serem respondidas. Pessoas no mundo inteiro, intrigadas com o que aconteceu em Paris, estão se perguntando o mesmo. Será o Islã capaz de converter as pessoas pelo simples uso da razão, sem recorrer à força bruta ou à agressão? Será capaz de pregar a sua religião sem “dispor do próprio braço” ou “ameaçar de morte uma pessoa”?
No fundo, dar uma resposta efetiva a tudo isso é uma tarefa que só os muçulmanos podem realmente levar a cabo.
Um mês depois de Ratisbona, de fato, algumas vozes do mundo islâmico chegaram a aceitar o convite do Santo Padre a um diálogo. Cem intelectuais, de diversas partes do mundo, endereçaram-lhe uma carta aberta, na qual respondiam respeitosamente algumas das questões levantadas em seu discurso.
Em 2008, foi a vez do Rei Abdullah, da Arábia Saudita, dar uma resposta às indagações de Bento XVI. “Tragédias que aconteceram na história – disse o monarca árabe, durante um encontro inter-religioso – não foram causadas pela religião, mas pelo extremismo adotado por alguns dos seguidores de cada uma das religiões.”
Enquanto isso, todavia, o sangue dos mártires cristãos continua a correr e a clamar por justiça no Oriente Médio. Para resolver a situação e dar um basta à impiedade, não bastam elucubrações teológicas de uns ou um mea culpa de outros. É preciso deter efetivamente a violência perpetrada pelo fundamentalismo islâmico, começando de cima, de onde vêm as ordens para a jihad. Até o momento, porém, não há sequer a mais remota esperança de que isso aconteça.
Às famílias francesas, sofrendo pela perda de seus entes queridos, as nossas mais profundas condolências e orações. Possa a França voltar, depressa, à sua vocação de “filha mais velha da Igreja”. Possa a Europa recuperar, o quanto antes, a sua identidade cristã. Antes que seja muito tarde.