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A Sor Lucía Caram: é preferível ser um ortodoxo hipócrita do que um heterodoxo sincero

Autor: José Miguel Arráiz
Fonte: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php
Trad.: Carlos Martins Nabeto

Sim, Sor Lucía, eu sei que ambas as coisas são ruins.

O ortodoxo hipócrita, porque diz que alguém deve fazer algo, porém ele mesmo não faz. Sobre estes advertiu Jesus, quando disse:

– “Fazei, pois, e observai tudo o que eles vos disserem; porém, não imiteis sua conduta, porque dizem mas não fazem” (Mateus 23,3).

Porém, maior dano ao próximo comete o heterodoxo sincero, porque ensina que não há problemas em se fazer aquilo que não deve ser feito, e ele mesmo é feliz por também fazer o que não deveria ser feito.

– “Ai daqueles que chamam o mal de ‘bem’ e de ‘bem’ o mal; aqueles que têm trevas por luz e luz por trevas; que oferecem o amargo por doce e o doce por amargo!” (Isaías 5,20).

Um diz e não faz. O outro diz o mal e faz o mal.

Esclareço isto a Sor Lucía em resposta a um artigo que reúne as suas declarações, publicado em Religion Digital[1]. Nesse artigo, ela denuncia aqueles que chama “os fariseus de hoje, raça de víboras e sepulcros caiados”, e afirma que “não se deve dar atenção aos doentes de ortodoxia hipócrita”.

Depois de ter lido tudo o que ela disse, quero responder-lhe com algumas observações pontuais, a partir da perspectiva de um simples católico de missa dominical, que não pertence a nenhuma ordem religiosa.

Antes de começar, deixo claro que não dou razão ao qualificativo que você atira ao vento, chamando os outros de “fariseus hipócritas”, porque para que você tivesse razão, deveria apontar concretamente e comprobar que esses a quem você acusa [abstratamente] realmente dizem mas não fazem.

O JESUS DO “NÃO-JUÍZO” 

Começa Sor Lucía:

– “Este era o qualificativo e a queixa de Jesus perante os fariseus, hipócritas, puritanos, que se dedicavam a esfolar a todos que não eram como eles ou aos que, segundo suas curtas visões, se afastavam da ortodoxia de uma religião que havia se tornado letra morta, no cumprimento vão (‘cumpro’ e ‘minto’)…. Se acreditavam no direito de julgar e condenar. Jesus os recriminou por se dedicarem a enxergar a palha no olho alheio sendo porém incapazes de enxergar a viga que tinham no próprio olho. Conformados com suas elucubrações e juízos implacáveis, permaneciam fechados à Boa Nova que Jesus trazia da parte de Deus e ao anúncio do seu Reino, no qual Deus se manifesta como misericórdia, perdão, acolhida, felicidade, paz, ‘não-juízo’”. 

Quando eu, um simples paroquiano, me ponho a ler a Bíblia, encontro muito daquilo que você menciona. Encontro, por exemplo, Jesus anunciando um tempo de graça e misericórdia:

– “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar aos pobres a Boa Nova; me enviou para proclamar a libertação aos cativos e a vista aos cegos; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor” (Lucas 4,18-19).

É certo também que criticou aqueles que julgavam os outros sem corrigir suas próprias faltas:

– “Como é que enxergas a palha que há no olho do teu irmão e não reparas na viga que há em teu olho?… Hipócrita! Tira primeiro a viga do teu olho e então poderás enxergar para tirar a palha do olho do teu irmão” (Mateus 7,3.5).

Porém, em todas essas oportunidades eu encontro um Jesus um pouco diferente daquele que você prega. É um Jesus que anuncia, sim, misericórdia e perdão àqueles que vivem em pecado, porém para que se arrependam e deixem de pecar. Ele não teme em estar acompanhado de pecadores, porém nunca os deixa no pecado; pelo contrário, os convida a segui-Lo e mudar. O caso da adúltera que está a ponto de ser apedrejada é claro e contundente, pois ao mesmo tempo que a perdoa, pede-lhe que não torne mais a pecar:

– “Tampouco eu te condeno. Vai-te e daqui por diante não peques mais” (João 8,11).

Com um paralítico que Jesus cura, repete-se a mesma cena; porém ali Jesus, inclusive, o adverte que, se continuar pecando, lhe poderá ocorrer algo pior:

– “Mais tarde, Jesus o encontrou no Templo e lhe disse: ‘Olha: estás curado; não peques mais, para que não te ocorra algo pior” (João 5,14).

Tampouco é correto que Jesus não fala de juízo. O Jesus do “não-juízo” é uma invenção sua. Uma coisa é que, em sua primeira vinda, não tenha vindo para julgar mas para convidar-nos a receber sua graça; e, outra coisa, que eventualmente o vá fazer. Por isso, ainda que sempre ofereça o perdão àquele que se arrepende, também adverte àqueles que são duros de coração sobre o destino que os aguarda, caso não se convertam:

– “Por isso eu vos digo que no dia do Juízo haverá menos rigor para com Tiro e Sidon do que para convosco. E tu, Cafarnaum, que te elevas até os céus? Afundarás até o Hades! Porque se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que foram feitos em ti, teria subsistido até o dia de hoje. Por isso eu vos digo que no dia do Juízo haverá menos rigor para com a terra de Sodoma do que para contigo”(Mateus 11,22-24).

– “Os ninivitas se levantarão no Juízo contra esta geração e a condenarão; porque eles se converteram pela pregação de Jonas e eis que aqui está alguém maior que Jonas” (Mateus 12,41).

Jesus tampouco disse que não iria julgar. Ele disse precisamente o contrário:

– “Porque o Pai não julga ninguém, mas entregou todo juízo ao Filho” (João 5,22).

– “E disse Jesus: ‘Por uma razão vim a este mundo: para que os que não enxergam passem a enxergar e para que os que enxergam se tornem cegos’” (João 9,39).

– “Quando o Filho do homem vier em sua glória, acompanhado de todos os seus anjos, então se assentará no seu trono de glória. Serão reunidas diante Dele todas as nações e Ele separará umas das outras, tal como o pastor que separa as ovelhas dos cabritos” (Mateus 25,31-32).

Não se trata portanto de um Jesus adocicado, que nunca julga nem condena, mas de um Jesus que em sua infinita misericórdia nos dá a oportunidade de nos converter uma e outra vez, para que, ao final, quando formos julgados por Ele, não venhamos a ser condenados.

AS “CARGAS PESADAS” QUE NINGUÉM PODE CARREGAR

Você também reprova aqueles a quem chama “fariseus” que colocam cargas pesadas sobre outras pessoas, cargas que nem eles próprios podem carregar. Você diz:

– “A estes, Jesus hoje também os chamaria ‘raça de víboras e sepulcros caiados’, porque impõem cargas pesadas [a outros] que eles mesmos são incapazes de carregar. A estes, lhes faz mal uma Igreja em movimento, uma Igreja que escuta, perdoa e acolhe; uma Igreja que vai às periferias e oferece resposta às interrogações reais das pessoas e que é capaz de acolher seus problemas, para os quais o Evangelho sempre tem uma proposta. A esses doutores sem cátedras de bondade, lhes contraria uma Igreja que foge do poder e que prefere o serviço; que é austera e quer ser pobre com os pobres; que prefere mais a mesa simples do que os grandes banquetes”. 

Eu não vejo que esses a quem você hoje chama de “fariseus” tenham alguma objeção em ser uma Igreja “em movimento”, que “acolhe”; e se alguém tivesse algo contra isso, tal coisa seria um outro problema. O péssimo é que se rotule como “cargas pesadas” os Mandamentos de Deus e se condene àqueles cujo único “pecado” é ensinar que [os Mandamentos] devem ser cumpridos. Lembre-se que o mesmo Jesus misericordioso de quem você fala também disse:

– “Mas se quiseres entrar na Vida, cumpre os Mandamentos” (Mateus 19,17).

– “Porém, aquele que descumprir um destes mandamentos, ainda que seja o menor deles, e assim vier a ensinar aos homens, será ele o menor no Reino dos Céus; ao contrário, aquele que os cumprir e os ensinar, esse será grande no Reino dos Céus” (Mateus 5,19).

Não somos protestantes, nem cremos que somente pela fé já somos declarados justos. Cremos que Sua graça nos faz justos e nos capacita para cumprir os Mandamentos:

– “Não sofrereis tentação superior à medida humana. Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Pelo contrário, com a tentação vos dará um modo de poder resisti-la com êxito” (1Coríntios 10,31).

Para um católico, os Mandamentos não são “letra morta” e nem algo tão alheio que não possamos cumprir com a Sua graça. É o próprio Deus quem nos adverte:

– “Porque estes Mandamentos que Eu te prescrevo hoje não são superiores às tuas forças, nem estão fora do teu alcance. Não estão no céu, para que precises dizer: ‘Quem subirá por nós ao céu para buscá-los, para que os ouçamos e os ponhamos em prática?’ Nem estão do outro lado do mar, para que precises dizer: ‘Quem irá por nós até o outro lado do mar para buscá-los, para que os ouçamos e os ponhamos em prática?’ Eis que a palavra está bem próxima de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhais em prática” (Deuteronômio 20,14).

Perceba que ao criticar que existam pastores que recordem ao povo a importância de se cumprir os Mandamentos, o que você critica é que cumpram com o dever que lhes foi confiado; ou, dito de outro modo: que sejam coerentes com sua fé. E aqui passo ao ponto seguinte.

COERÊNCIA POR DEUS. COERÊNCIA!

Nos tempos dos meus avós havia muitos pecadores, porém, por justiça, preciso dizer que eram pecadores coerentes. Não se lhes ocorria chamar o mal de “bem”, nem o bem de “mal”. Reconheciam-se pecadores, admitiam que era mal o que faziam e, precisamente por isso mesmo, tinham a oportunidade de posteriormente receber a graça do arrependimento. É que para poder se arrepender é necessário que primeiro se tenha consciência de que agiu mal, do contrário terminaríamos cegos como os fariseus da época de Jesus:

– “Se fosses cegos, não teríeis pecado; porém, como dizeis: ‘enxergamos’, vosso pecado permanece” (João 9,41).

O problema é que atualmente temos pastores que ao invés de denunciarem algo como pecado, para não incomodar e ser politicamente corretos, optam por não chamar o pecado pelo seu nome próprio.

Eu, quando decidi continuar católico, decidi fazê-lo de forma coerente. Dito de outro modo: se um dia eu deixo de professar a fé católica, não posso permanecer na Igreja; teria que admitir que já não o sou e sair dela.

A ação contrária seria incoerente; seria como se eu fosse um professor que já não crê na matemática e, por isso, pretendo ensinar biologia em seu lugar. E se alguém me reprova, o acuso de intolerante. “Porém, estamos numa aula de matemática!”, dirão alguns alunos e eu insistirei que sou professor de matemática, da mesma maneira que hoje há uma infinidade de teólogos que continuam insistindo que são católicos enquanto pregam ideologia e doutrinas protestantes.

Coloquemos o seu próprio caso como exemplo, Sor Lucía. Por um lado o ensino oficial da Igreja, manifestado em seu Catecismo, nos ensina que os atos homossexuais, por serem intrinsecamente desordenados, não podem receber aprovação em caso nenhum:

– “’Os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados’ (Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração ‘Persona Humana’, nº 8). São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementariedade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados” (Catecismo da Igreja Católica, nº 2357).

Entretanto, você ensina que a Igreja deve abençoar qualquer espécie de amor, incluindo as relações homossexuais:

– “Sor Lucía Caram pede à Igreja para não se meter na decisão daqueles que abortam e abençoar toda espécie de amor”[2]

Eu posso entender que você não esteja de acordo com o Catecismo e o ensino da Igreja; porém, se você não crê no que ensina a Igreja Católica, não é incoerência pretender continuar dizendo que é católica? Quem é o hipócrita? Aquele que coerentemente recorda e ensina o que diz o Catecismo ou aquele que carrega o Catecismo debaixo do braço mas não crê no que está dito ali?

Passemos agora para o caso do aborto. Na entrevista anteriormente citada, você diz que um católico não deve dizer nada a uma mulher que deseje abortar:

– “Contudo, quem deve tomar livremente a decisão (de abortar) são as pessoas. A Igreja não pode se meter aí. Nem sequer Deus, que nos fez livres” (Sor Lucía Caram).

Porém, por outro lado, a Igreja ensina que o aborto é sempre um crime, um assassinato de um ser indefeso no seio de sua mãe, e que sua mãe não tem o direito moral de tirar-lhe a vida. O Papa Francisco, que você sempre elogia, disse isso bem claramente:

– “O Papa Francisco declara que o aborto é SEMPRE um crime”[3]

E se é assim e o Papa tem razão, você está dizendo que nem a Igreja, nem Deus, nem ninguém pode dizer nada a uma mulher que se dispõe a cometer um crime. Isso é tão absurdo quanto não se poder dizer nada a um assassino que se dispõe a matar a sua vítima, alegando que Deus lhe deu liberdade (você deve aprender a diferenciar entre “liberdade moral” e “liberdade psicológica”).

O que você acha que Jesus pensaria – Ele que também não duvidou em expulsar a chicotadas os mercadores do templo – de uma freira que, dizendo-se “católica”, afirma que devemos ficar de braços cruzados quando alguém vai cometer um crime e que qualquer espécie de amor deve ser abençoado? E se eu, amanhã, me apaixonar por um animal, Ele também abençoará? Me parece que Ele provavelmente a expulsaria do convento.

A RAIZ DO PROBLEMA

Segundo o meu modo de ver, uma das principais doenças de que sofrem os católicos hoje é a mesma que acomete o mundo inteiro: buscar a paz a todo custo, evitando confrontos. Por exemplo, se o ensino do Catecismo incomoda os homossexuais, a solução para alguns seria pedir-lhes perdão por crermos no que cremos:

– “Cardeal Marx: a Igreja deve pedir perdão aos homossexuais. ‘Não se pode dizer que uma relação (homossexual) entre dois homens, se são fiéis, não tem nenhum valor'”[4]

(Quanto a isto, lamentei ver como o Papa, ao ser consultado, evitou o centro da questão.)

E assim temos que enquanto o Catecismo oficialmente ensina que as relações homossexuais “não podem receber aprovação em nenhum caso”, um cardeal “católico” diz que não só podem receber aprovação, como também têm valor inclusive. Como dizemos aqui em meu país: ou é carne ou é limonada; ou ensinam uma coisa, ou ensinam outra; entretanto, se prosseguirmos assim, contrairemos um transtorno bipolar.

O mais grave é que neste estado de patetismo espiritual, o cumprir o dever cristão de denunciar objetivamente aquilo que é pecado converte aquele que o faz naquilo que Sor Lucía Caram chama de “ortodoxo hipócrita”. Não haverá uma Sor Lucía Caram à altura de um São João Batista, capaz de perder a cabeça ao denunciar o adultério do rei Herodes; pelo contrário, as Sor Lucía Caram de hoje seriam o equivalente às Herodíases, que pedirão a cabeça de João com a desculpa de não se condenar ninguém (cf. Marcos 6,24).

Contudo, se todos nos tornarmos católicos diluídos, patéticos, pusilânimes, incapazes de denunciar o que é mal, já não seremos luz do mundo, nem sal da terra; só serviremos mesmo para ser pisoteados:

– “Vós sois o sal da terra. Mas se o sal perde seu sabor, com o que se salgará? Já não serve para mais nada; será lançado fora e pisoteado pelos homens” (Mateus 5,13).

Hoje há uma grande escassez de católicos combatentes, diferentemente de outras épocas em que abundaram e foram a glória da Igreja. Precisamos hoje de um Santo Agostinho e suas incontáveis apologias contra os erros; ou de um Santo Ireneu, que enfrentou todas as heresias do seu tempo. Se vivesse hoje Santo Atanásio, teólogos como José Antonio Pagola, Andres Torres Queiruga e muitos outros não encontrariam lugar para se esconderem. Hoje é melhor calar: “viva e deixe viver”, apesar de Jesus nos dar, no Evangelho, uma mensagem curta mas contundente:

– “Crês que vim aqui para trazer paz à terra? Vos asseguro que não, mas divisão. Porque a partir de agora haverá cinco em uma casa e estarão divididos: três contra dois e dois contra três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra” (Lucas 12,51-53).

Pregar a verdade sempre poderá trazer confrontos porque a mensagem evangélica nos obriga a tomar partido. Ou és luz ou és trevas. Ou denuncias o mal ou te calas covardemente. Não há nada de errado em dizer ao outro que ele está equivocado, quando por nossa fé temos a certeza de que ele está errado. Não se trata de impor nossas razões, não se trata de obrigá-los a crer; trata-se de expor a verdade como um ato de caridade para com o irmão. Se nós estivéssemos equivocados e alguém soubesse disso, é claro que quereríamos que isso nos fosse dito.

Para que compreendam na prática esta doença que acomete o mundo de hoje e que tem infectado também os católicos que querem ser sempre politicamente corretos e estarem de bem com Deus e com o diabo, convido que assistam a este interessante vídeo sobre a ideologia do gênero. Ainda que não trate do nosso tema em específico, reflete com lucidez esse tipo de mentalidade.

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NOTAS:
[1] http://www.periodistadigital.com/religion/opinion/2016/08/14/religion-iglesia-espana-opinion-sor-lucia-caram-no-hay-que-hacerles-caso-a-los-enfermos-de-ortodoxia-hipocrita.shtml
[2] http://infocatolica.com/?t=noticia&cod=19779
[3] https://www.aciprensa.com/noticias/que-lo-sepa-todo-el-mundo-el-aborto-siempre-es-un-crimen-afirma-el-papa-francisco-37048/
[4] http://www.periodistadigital.com/religion/mundo/2016/06/27/religion-iglesia-mundo-marx-iglesia-homosexuales-perdon-justicia-reconocimiento.shtml

50 Coisas que Afastaram Lutero da Ortodoxia Católica

lutero

Por Dave Armstrong Tradução: Carlos Martins Nabeto Fonte: http://socrates58.blogspot.com Chris Jones me encaminhou esta pergunta: “Por que o dr. Lutero foi excomungado? De que modo ele era heterodoxo?”. Sumarizo abaixo como ele era visto como heterodoxo em 1520, segundo os padrões católicos virtualmente aceitos ou inquestionáveis. Observo que o objetivo aqui não é discutir se tais ensinamentos católicos são certos ou errados, mas apenas se conforme esses ensinamentos Lutero seria tido por “heterodoxo” ou “herege” (isto é, se a Igreja tinha pelo menos uma autoconsistência ao decidir por excomungá-lo ou se agiu arbitrariamente contra a verdade ou contra as afirmações de Lutero, tidas – neste último caso falsamente – como heresia). Pois bem. É absolutamente notório que Lutero era herege e que a Igreja não tinha a obrigação de debater com ele na Dieta de Worms em 1521. E sendo óbvio que ele pregava heresias, era igualmente óbvio que a Igreja deveria exigir a sua retratação, para que renunciasse e cessasse de agir assim. Ele se recusou a fazê-lo, pois achava que sabia mais que a própria Igreja (como de fato afirmou diversas vezes). Certamente, nenhum protestante agiria diferentemente, quer naquele tempo quer agora, tendo em vista as dezenas de rejeições que estabeleceu frente aos seus dogmas particulares. Listo aqui as crenças de Lutero contrárias à Igreja (sem examinar pontos mais detalhados de soteriologia): 1. Separação entre justificação e santificação. 2. Noção imputada, extrínsica e forense de justificação. 3. Fé fiduciária. 4. Julgamento particular contrário à infalibilidade da Igreja. 5. Rejeição de sete livros da Bíblia. 6. Negação do pecado venial. 7. Negação do mérito. 8. Afirmação de que o réprobo deveria ficar feliz por ter sido condenado e aceitar a vontade de Deus. 9. Afirmação de que Jesus ofereceu-se à condenação e possivelmente ao fogo do inferno. 10. Afirmação de nenhuma boa obra pode ser feita, exceto por um homem justificado. 11. Todos os homens batizados são sacerdotes (=negação do sacramento da ordenação). 12. Todos os homens batizados podem conceder a absolvição. 13. Os bispos não possuem realmente esse múnus; Deus não os instituiu. 14. Os papas não possuem esse múnus; Deus não os instituiu. 15. Os sacerdotes não têm qualquer caráter especial ou indelével. 16. As autoridades temporais gozam de poder sobre a Igreja, até mesmo sobre bispos e papas; a afirmação contrária é mera invenção presunçosa. 17. Os votos de celibato são um erro e deveriam ser abolidos. 18. Negação da infalibilidade do papa. 19. Crença de que sacerdotes e papas injustos perdem a sua autoridade (contrário ao ensino de Santo Agostinho em disputa com os Donatistas). 20. As chaves do Reino não foram conferidas apenas a Pedro. 21. Cada pessoa pode julgar particularmente para determinar os artigos de fé. 22. Negação de que o papa tem o direito de convocar ou confirmar um Concílio. 23. Negação de que a Igreja tem o direito de exigir o celibato de certas vocações. 24. Não existe a vocação de monge; Deus não o instituiu. 25. Os dias festivos deveriam ser abolidos e todas as celebrações da Igreja deveriam se restringir aos domingos. 26. Os jejuns deveriam ser estritamente opcionais. 27. A canonização de santos é rigorosamente corrupta e não deve continuar. 28. A Confirmação não é um sacramento. 29. As indulgências deveriam ser abolidas. 30. As dispensas deveriam ser abolidas. 31. A Filosofia (Aristóteles principalmente) é repugnante, com influência negativa sobre o Cristianismo. 32. A transubstanciação é “uma idéia monstruosa”. 33. A Igreja não pode instituir sacramentos. 34. Negação da “maldita” crença de que a missa é uma boa obra. 35. Negação da “maldita” crença de que a missa é verdadeiro sacrifício. 36. Negação da noção sacramental de “ex opere operato”. 27. Negação de que a Penitência é um sacramento. 38. Afirmação de que a Igreja Católica “aboliu completamente” até mesmo a prática da penitência. 39. Afirmação de que a Igreja aboliu a fé como um aspecto da penitência. 40. Negação da sucessão apostólica. 41. Qualquer leigo poderia convocar um Concílio Geral (Ecumênico). 42. As obras penitenciais são inúteis. 43. Nada daquilo que os católicos crêem ser os sete sacramentos tem prova bíblica. 44. O Matrimônio não é um sacramento. 45. Nulidades [matrimoniais] são um conceito sem sentido e a Igreja não tem o direito de determinar ou afirmar nulidades. 46. Há uma questão em aberto: se o divórcio é permitido ou não. 47. Pessoas divorciadas podem voltar a se casar. 48. Jesus permitiu o divórcio quando um dos cônjuges cometeu adultério. 49. O ofício diário do sacerdote é “vã repetição”. 50. A extrema-unção não é um sacramento (logo, só existem dois sacramentos: o Batismo e a Eucaristia). Como se vê por esse 50 pontos, Lutero era herege, heterodoxo, cismático ou acreditava em coisas que eram claramente contrárias aos ensinamentos ou práticas da Igreja Católica, até e inclusive em pontos verdadeiramente radicais (às vezes era também socialmente radical). Não estaria então justificada sua excomunhão dos meios católicos? Ou deveria a Igreja dizer: “É verdade, Lutero, você sabe; você está certo nesses 50 pontos. Você sabe mais que a Igreja inteira, que toda a história da Igreja e que toda a sabedoria dos santos do passado que acreditavam nessas coisas. Portanto, vamos aderir à sua sabedoria celestial e alterar todas estas 50 crenças ou práticas, para que possamos caminhar na direção correta. Muito obrigado! Seremos sempre gratos a você por nos ter informado sobre todos esses erros”. Isto não soa ridículo? A Igreja teria que mudar 50 aspectos em suas doutrinas porque uma pessoa PARTICULARMENTE ACHOU que recebeu algum tipo de oráculo de Deus ou falso profeta. Homem de Deus daquele tempo? Vamos então supor que seja auto-evidente que Lutero era um bom e obediente católico, que queria reformar a Igreja, sem destruí-la ou abandoná-la, para criar uma nova seita. Ele seria ingênuo ou bobo o suficiente para acreditar que ele mesmo, objetivamente falando, não estava então oferecendo um programa radical, uma verdadeira revolução? Isso é claro e patente para qualquer um, mesmo antes de 1520. O que ele oferecia não era uma reforma… e a denominada “Reforma Protestante” não é o que diz ser, quando considerada como um todo. É uma Revolta ou uma Revolução. Já demonstrei o porquê disso em outros artigos. Nenhuma pessoa em sã consciência que tenha lido qualquer um dos três tratados radicais de 1520 de Lutero duvidaria que ele já não era um católico ortodoxo. Ele não se tornou relutante apenas porque foi expulso da Igreja por homens que não queriam ouvir a razão e a Escritura manifesta (como o mito e propaganda perpétua protestante costuma argumentar), mas porque ele escolheu aceitar as doutrinas heréticas que ele mesmo criou, fugindo ao padrão da ortodoxia católica, e tornando-se um radical, tentando ainda espalhar os seus erros (de forma passional e franca) pelo mundo afora mediante panfletos difamatórios, zombeteiros e propagandísticos e até mesmo empregando gravuras indecorosas quando necessário. Vemos, assim, que a Igreja foi totalmente sensível, razoável, dentro de seus direitos, lógica, autoconsistente e não hipócrita ou arbitrária ao simplesmente exigir de Lutero sua retratação na Dieta de Worms em 1521 e ao recusar-se em debater com ele (até porque já tinha feito isso outras vezes, anteriormente), porque se assim o fizesse estaria aceitando a ridícula presunção de Lutero de que estava em uma posição de disputa e debate unilateral face a doutrina e sabedoria teológica acumuladas pela Igreja ao longo de seus 1500 anos.

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