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Santo Ambrósio de Milão

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

O santo bispo Ambrósio, de quem vos falarei hoje, faleceu em Milão na noite entre os dias 3 e 4 de abril do ano 397. Era o amanhecer do sábado santo. No dia anterior, por volta das 17h, ele estava rezando, prostrado no leito, com os braços abertos em forma de cruz. Deste modo, participava do solene tríduo pascal, da morte e da ressurreição do Senhor. «Nós víamos que seus lábios se mexiam, testifica Paulino, o diácono fiel que por convite de Agostinho escreveu sua ‘Vida’, mas não escutávamos sua voz».

De repente, parecia que a situação chegava a seu fim. Honorato, bispo de Vercelli, que estava ajudando Ambrósio e que dormia no andar superior, acordou ao escutar uma voz que lhe repetia: «Levanta-te logo! Ambrósio está a ponto de morrer…». Honorato desceu imediatamente – continua contando Paulino – «e lhe ofereceu o santo Corpo do Senhor. Ao acabar de recebê-lo, Ambrósio entregou o espírito, levando consigo o viático. Deste modo, sua alma, alimentada pela virtude desse alimento, goza agora da companhia dos anjos» («Vida» 47).

Naquela sexta-feira santa do ano 297, os braços abertos de Ambrósio moribundo expressavam sua participação mística na morte e ressurreição do Senhor. Era sua última catequese: no silêncio das palavras, continuava falando com o testemunho da vida.

Ambrósio não era idoso quando faleceu. Não tinha nem sequer sessenta anos, pois nasceu por volta do ano 340 em Tréveris, onde seu pai era prefeito das Gálias. A família era cristã. Quando seu pai faleceu, sua mãe o levou a Roma, sendo ainda um menino, e lhe preparou para a carreira civil, dando-lhe uma sólida educação retórica e jurídica. Por volta do ano 370, propuseram-lhe governar as províncias de Emilia e Ligúria, com sede em Milão. Precisamente lá estava a luta entre ortodoxos e arianos, sobretudo depois da morte do bispo ariano Ausêncio. Ambrósio interveio para pacificar os espíritos das duas facções enfrentadas, e sua autoridade foi tal que, apesar de que não era mais que um simples catecúmeno, foi proclamado bispo de Milão pelo povo.

Até esse momento, Ambrósio era o mais alto magistrado do Império na Itália do norte. Sumamente preparado culturalmente, mas desprovido do conhecimento das Escrituras, o novo bispo dedicou-se a estudá-las com fervor. Aprendeu a conhecer e a comentar a Bíblia através das obras de Orígenes, o indiscutível mestre da «escola de Alexandria». Deste modo, Ambrósio levou ao ambiente latino a meditação das Escrituras começadas por Orígenes, começando no Ocidente a prática da «lectio divina».

O método da «lectio» chegou a guiar toda a pregação e os escritos de Ambrósio, que surgem precisamente da escuta orante da Palavra de Deus. Um célebre início de uma catequese ambrosiana mostra egregiamente a maneira em que o santo bispo aplicava o Antigo Testamento à vida cristã: «Quando lemos as histórias dos Patriarcas e as máximas dos Provérbios, enfrentamos cada dia a moral – diz o bispo de Milão a seus catecúmenos e aos neófitos – para que, formados por eles, vos acostumeis a entrar na vida dos Padres e a seguir o caminho da obediência aos preceitos divinos» («Os mistérios» 1, 1).

Em outras palavras, os neófitos e os catecúmenos, segundo o bispo, após ter aprendido a arte de viver moralmente, podiam considerar-se que já estavam preparados para os grandes mistérios de Cristo. Deste modo, a pregação de Ambrósio, que representa o coração de sua ingente obra literária, parte da leitura dos livros sagrados («os Patriarcas», ou seja, os livros históricos, e «os Provérbios», ou seja, os livros sapienciais), para viver segundo a Revelação divina.

É evidente que o testamento pessoal do pregador e a exemplaridade da comunidade cristã condiciona a eficácia da pregação. Desde este ponto de vista, é significativa uma passagem das «Confissões» de Santo Agostinho. Ele havia ido a Milão como professor de retórica; era cético, não cristão. Estava buscando, mas não era capaz de encontrar realmente a verdade cristã. Ao jovem retórico africano, cético e desesperado, não lhe moveram a converter-se definitivamente as belas homilias de Ambrósio (apesar de que as admirava muito). Foi mais o testemunho do bispo e de sua Igreja milanesa, que rezava e cantava, unida como um só corpo. Uma Igreja capaz de resistir à prepotência do imperador e de sua mãe, que nos primeiros dias do ano 386 haviam voltado a exigir a expropriação de um edifício de culto para as cerimônias dos arianos. No edifício que tinha que ser desapropriado, conta Agostinho, «o povo devoto velava, disposto a morrer com seu próprio bispo». Este testemunho das «Confissões» é belíssimo, pois mostra que algo estava acontecendo na intimidade de Agostinho, que continua dizendo: «E nós também, apesar de que ainda éramos tíbios, participávamos do movimento de todo o povo» («Confissões» 9, 7).

Da vida e do exemplo do bispo Ambrósio, Agostinho aprendeu a crer e a pregar. Podemos fazer referência a um famoso sermão do africano, que mereceu ser citado muitos séculos depois na Constituição conciliar «Dei Verbum»: «É necessário – adverte de fato a «Dei Verbum» no número 25 –, que todos os clérigos, sobretudo os sacerdotes de Cristo e os demais que, como os diáconos e catequistas, dedicam-se legitimamente ao ministério da palavra, submergem-se nas Escrituras com assídua leitura e com estudo diligente, para que nenhum deles acabe sendo – e aqui vem a citação de Agostinho – ‘pregador vazio e supérfluo da palavra de Deus, que não a escuta em seu interior’». Havia aprendido precisamente de Ambrósio essa «escuta em seu interior», essa assiduidade com a leitura da Sagrada Escritura com atitude de oração, para acolher realmente no coração e assimilar a Palavra de Deus.

Queridos irmãos e irmãs: quero apresentar-vos uma espécie de «ícone patrístico» que, interpretado à luz do que dissemos, representa eficazmente o coração da doutrina de Ambrósio. No mesmo livro das «Confissões», Agostinho narra seu encontro com Ambrósio, certamente um encontro de grande importância para a história da Igreja. Escreve que, quando visitava o bispo de Milão, sempre o via rodeado de pessoas cheias de problemas, por quem vivia para atender suas necessidades. Sempre havia uma longa fila que estava esperando pra falar com Ambrósio, para encontrar nele consolo e esperança. Quando Ambrósio não estava com eles, com as pessoas (e isso acontecia em brevíssimos espaços de tempo), ou estava alimentando o corpo com a comida necessária, ou o espírito com as leituras. Aqui Agostinho canta suas maravilhas, porque Ambrósio lia as Escrituras com a boca fechada, só com os olhos (cf. «Confissões». 6, 3). De fato, nos primeiros séculos cristãos, a leitura só se concebia para ser proclamada, e ler em voz alta facilitava também a compreensão a quem lia. O fato de que Ambrósio pudesse passar as páginas só com os olhos é para o admirado Agostinho uma capacidade singular de leitura e de familiaridade com as Escrituras. Pois bem, nessa leitura, na qual o coração se empenha por alcançar a compreensão da Palavra de Deus – este é o «ícone» do qual estamos falando –, pode-se entrever o método da catequese de Ambrósio: a própria Escritura, intimamente assimilada, sugere os conteúdos que é necessário anunciar para levar à conversão dos corações.

Deste modo, segundo o magistério de Ambrósio e de Agostinho, a catequese é inseparável do testemunho de vida. Pode servir também para o catequista o que escrevi na «Introdução ao cristianismo» sobre os teólogos. Quem educa na fé não pode correr o risco de apresentar-se como uma espécie de «clown», que recita um papel «por ofício». Mais ainda, utilizando uma imagem de Orígenes, escritor particularmente admirado por Ambrósio, tem de ser como o discípulo amado, que apoiou a cabeça no coração do Mestre, e lá aprendeu a maneira de pensar, de falar, de atuar. No final de tudo, o verdadeiro discípulo é quem anuncia o Evangelho da maneira mais confiável e eficaz.

Como o apóstolo João, o bispo Ambrósio, que nunca se cansava de repetir: «‘Omnia Christus est nobis’!; Cristo é tudo para nós!», continua sendo uma autêntica testemunha do Senhor. Com suas próprias palavras, cheias de amor por Jesus, concluímos assim nossa catequese: «‘Omnia Christus est nobis!’ Se queres curar uma ferida, ele é o médico; se estás ardendo de febre, ele é a fonte; se estás oprimido pela iniqüidade, ele é a justiça; se tens necessidade de ajuda, ele é a força, se tens medo da morte, ele é a vida; se desejas o céu, ele é o caminho; se estás nas trevas, ele é a luz… Provai e vede que bom é o Senhor, bem-aventurado o homem que espera nele!» («De virginitate» 16, 99). Nós também esperamos em Cristo. Dessa forma seremos bem-aventurados e viveremos na paz.

Santo Eusébio de Vercelli

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Caros irmãos e irmãs,

Nesta manhã, eu vos convido a refletir sobre Santo Eusébio de Vercelli, o primeiro bispo da Itália setentrional de que temos notícia segura. Nascido em Sardenha no início do século IV, ainda em tenra idade se transferiu para Roma com sua família. Mais tarde foi instituído leitor, passando a fazer parte do clero de Urbe, em um tempo em que a Igreja era gravemente provada pela heresia ariana.

A grande estima que aumentou por Eusébio explica sua eleição em 345 à cátedra episcopal de Vercelli. O novo Bispo iniciou logo uma intensa obra de evangelização em um território ainda em grande parte pagão, especialmente na área rural.

Inspirado em Santo Atanásio – que havia escrito a «Vida de Santo Antônio», iniciador do monaquismo no Oriente –, fundou em Vercelli uma comunidade sacerdotal, semelhante a uma comunidade monástica. Esta experiência deu ao clero da Itália setentrional um significativo traço de santidade apostólica, e suscitou figuras de Bispos importantes, como Limênio e Onorato, sucessores de Eusébio em Vercelli, Gaudêncio em Novara, Esuperâncio em Tortona, Eustásio em Aosta, Eulógio em Ivrea, Máximo em Turim, todos venerados da Igreja como santos.

Solidamente formado na fé nicena, Eusébio defende com todas as forças a divindade de Jesus Cristo, definida no Credo de Nicéia «consubstancial» ao Pai. A tal propósito se aliou com os grandes Padres do século IV – sobretudo com Santo Atanásio, bispo da ortodoxia nicena – contra a política filo-ariana do imperador.

Para o imperador, a fé ariana, mais simples, parece politicamente mais útil como ideologia do império. Para ele, não importava a verdade, mas a oportunidade política: queria instrumentalizar a religião como ponto de unidade do império. Mas estes grandes Padres resistiram, defendendo a verdade contra a dominação da política. Por esse motivo, Eusébio foi condenado ao exílio como tantos outros Bispos do Oriente e do Ocidente: como o próprio Atanásio, como Hilário de Poitiers – dos quais falamos da última vez –, como Ósio de Córdoba. Em Escitópolis, na Palestina, onde foi confinado em 355 e em 360, Eusébio escreve uma página maravilhosa da sua vida.

Também lá fundou um cenóbio com um pequeno grupo de discípulos e desde então manteve o contato com seus fiéis de Piamonte, como demonstra sobretudo a segunda das três Cartas de Eusébio reconhecidas como autênticas.

Posteriormente, depois do ano 350, foi exilado na Capadócia e Tebaida, onde sofreu muito fisicamente. No ano 361, ao falecer Constâncio II, foi substituído pelo imperador Juliano, chamado o apóstata, a quem não lhe interessava o cristianismo como religião do império, mas que queria mais restaurar o paganismo. Ele acabou com o exílio desses bispos e deste modo permitiu também que Eusébio voltasse a tomar posse de sua sede.

No ano 362 foi convidado por Anastásio a participar no Concílio de Alexandria, que decidiu o perdão aos bispos arianos, com a condição de que voltassem ao estado leigo. Eusébio pôde continuar exercendo durante aproximadamente dez anos seu ministério episcopal, até a morte, estabelecendo com sua cidade uma relação exemplar, que inspirou o serviço pastoral de outros bispos da Itália do Norte, de quem falaremos nas próximas catequeses, como Santo Ambrósio de Milão e São Máximo de Turim.

A relação entre o bispo de Vercelli e sua cidade fica iluminada sobretudo por dois testemunhos epistolares. O primeiro se encontra na Carta já citada, que Eusébio escreveu desde o exílio de Escitópolis «aos queridíssimos filhos e aos presbíteros tão desejados, assim como aos santos povos firmes na fé de Vercelli, Novara, Ivrea e Tortona» («Ep. Secunda», CCL 9, p. 104). Estas expressões iniciais, que mostram a comoção do bom pastor ante seu rebanho, encontram ampla confirmação ao final da Carta, nas saudações do padre a todos e a cada um de seus filhos de Vercelli, com expressões transbordantes de carinho e amor.

Deve-se destacar antes de tudo a relação explícita que une o bispo com as «sanctae plebes» não só de Vercelli – a primeira, e por anos a única diocese do Piamonte –, mas também com as de Novara, Ivrea e Tortona, ou seja, as comunidades que, dentro da mesma diocese, haviam conseguido uma certa consistência e autonomia.

Outro elemento interessante aparece na despedida da Carta: Eusébio pede a seus filhos e a suas filhas que saúdem «também quem está fora da Igreja, e que se dignam a amar-nos: “etiam hos, qui foris sunt et nos dignantur diligere”». Sinal evidente de que a relação do bispo com sua cidade não se limitava à população cristã, mas se estendia também àqueles que, estando fora da Igreja, reconheciam em certo sentido sua autoridade espiritual e amavam este homem exemplar.

O segundo testemunho da relação singular que se dava entre o bispo e sua cidade aparece na Carta que Santo Ambrósio de Milão escreveu aos cristãos de Vercelli em torno ao ano 394, mais de 20 anos depois da morte de Eusébio («Ep. Extra collectionem 14»: Maur. 63). A Igreja de Vercelli estava passando um momento difícil: estava dividida e sem pastor. Com franqueza, Ambrósio declara que lhe custa reconhecer neles a «descendência dos santos padres, que deram sua aprovação a Eusébio sem antes vê-lo, sem tê-lo conhecido, esquecendo inclusive seus próprios concidadãos».

Na mesma Carta, o bispo de Milão testemunha claramente sua estima por Eusébio: «Um grande homem», escreve, que «mereceu ser eleito por toda a Igreja». A admiração de Ambrósio por Eusébio se baseia sobretudo no fato de que o bispo de Vercelli governava sua diocese com o testemunho de sua vida: «Com a austeridade do jejum governava sua Igreja». De fato, também Ambrósio estava fascinado, como reconhece ele mesmo, pelo ideal monástico da contemplação de Deus, que Eusébio havia buscado seguindo as pegadas do profeta Elias.

Em primeiro lugar, escreve Ambrósio, o bispo de Vercelli reuniu o próprio clero em «vita communis» e o educou na «observância das regras monásticas, apesar de viver na cidade». O bispo e seu clero tinham que compartilhar os problemas de seus concidadãos, e o fizeram de uma maneira crível, cultivando ao mesmo tempo uma cidadania diferente, a do Céu (cf. Hebreus 13, 14). E, deste modo, edificaram uma autêntica cidadania, uma autêntica solidariedade comum entre os cidadãos de Vercelli.

Deste modo, Eusébio, assumindo a causa da «sancta plebs», de Vercelli, vivia no seio da cidade como um monge, abrindo a cidade a Deus. Esta dimensão, portanto, não tirou nada de seu dinamismo pastoral. Entre outras coisas, parece que instituiu em Vercelli as igrejas rurais para um serviço eclesial ordenado e estável, e promoveu os santuários marianos para a conversão das populações rurais pagãs. Pelo contrário, este «caráter monástico» dava uma dimensão particular à relação do bispo com sua cidade. Igual aos apóstolos, por quem Jesus rezava na Última Ceia, os pastores e os fiéis da Igreja «estão no mundo» (Jo 17, 11), mas não são «do mundo».

Por esse motivo, os pastores, recordava Eusébio, têm que exortar os fiéis a não considerarem as cidades do mundo como sua morada estável, mas devem buscar a Cidade futura, a Jerusalém definitiva do céu. Esta «dimensão escatológica» permite aos pastores e aos fiéis salvaguardar a hierarquia justa dos valores, sem render-se jamais às modas do momento e às injustas pretensões do poder político. A autêntica hierarquia dos valores, parece dizer toda a vida Eusébio, não é decidida pelos imperadores de ontem ou de hoje, mas procede de Jesus Cristo, o Homem perfeito, igual ao Pai na divindade, e ao mesmo tempo homem como nós.

Referindo-se a esta hierarquia de valores, Eusébio não se cansa de «recomendar efusivamente» a seus fiéis que guardem «com todos os meios a fé, que mantenham a concórdia, que sejam assíduos na oração» (Ep. Secunda», cit.)

Queridos amigos, também eu vos recomendo de todo o coração estes valores perenes, e vos abençôo e saúdo com as mesmas palavras com as que o santo bispo Eusébio concluía sua segunda Carta: «Me dirijo a todos vós, irmãos meus e santas irmãs, filhos e filhas, fiéis dos dois sexos e de toda idade, para que… leveis nossa saudação também aos que estão fora da Igreja, e que se dignam a amar-nos» (ibidem).

São Cirilo de Alexandria

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Também hoje, continuando com nosso caminho seguindo os passos dos Padres da Igreja, encontramos uma grande figura: São Cirilo de Alexandria. Ligado à controvérsia cristológica que levou ao Concílio de Éfeso do ano 431, último representante de importância da tradição alexandrina, Cirilo foi definido mais tarde no Oriente como «Custódio da exatidão» – que quer dizer custódio da verdadeira fé – e inclusive como «selo dos Padres». Estas antigas expressões manifestam um dado de fato que é característico de Cirilo, ou seja, a constante referência do bispo de Alexandria aos autores eclesiásticos precedentes (entre estes, sobretudo Atanásio) com o objetivo de mostrar a continuidade da própria teologia com a tradição. Quis integrar-se explicitamente na tradição da Igreja, na qual reconhece a garantia de continuidade com os apóstolos e com o próprio Cristo.

Venerado como santo tanto no Oriente como no Ocidente, em 1882 São Cirilo foi proclamado doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII, quem ao mesmo tempo atribuiu o mesmo título a outro importante expoente da patrística grega, São Cirilo de Jerusalém. Revelaram-se assim a atenção e o amor pelas tradições cristãs orientais daquele Papa, que depois quis proclamar também doutor da Igreja São João Damasceno, mostrando que tanto a tradição oriental como a ocidental expressam a doutrina da única Igreja de Cristo.

Chegaram-nos poucas notícias sobre a vida de Cirilo antes de sua eleição à importante sede de Alexandria. Sobrinho de Teófilo, que desde o ano 385 como bispo regeu com mão firme e prestigio a diocese de Alexandria, Cirilo nasceu provavelmente nessa mesma cidade egípcia entre o ano 370 e 380. Depois abraçou a vida eclesiástica e recebeu uma boa educação, tanto cultural como teológica. No ano 403 se encontrava em Constantinopla seguindo seu poderoso tio e lá participou do Sínodo que depôs o bispo da cidade, João (depois conhecido como Crisóstomo), registrando assim o triunfo da sede de Alexandria sobre seu rival tradicional, Constantinopla, onde residia o imperador. Após a morte do seu tio Teófilo, sendo ainda jovem, Cirilo foi eleito no ano 412 como bispo da influente Igreja de Alexandria, governando-a com grande energia durante 32 anos, buscando afirmar sempre o primado em todo o Oriente, fortalecido também pelos laços tradicionais com Roma.

Dois ou três anos depois, no ano 417, o bispo de Alexandria deu provas de realismo ao sanar a ruptura da comunhão com Constantinopla, que acontecia desde o ano 406, após a deposição de Crisóstomo. Mas o antigo contraste com a sede de Constantinopla voltou a estourar dez anos depois, quando no ano 428 foi eleito Nestório, monge severo e de prestígio formado em Antioquia. O novo bispo de Constantinopla suscitou logo oposições, pois em sua pregação preferia para Maria o título de «Mãe de Cristo» («Christotòkos»), ao invés de «Mãe de Deus» (Theotòkos»), já então muito querido pela devoção popular.

O motivo dessa decisão do bispo Nestório era sua adesão à cristologia da tradição de Antioquia que, para salvaguardar a importância da humanidade de Cristo, acabava afirmando sua separação da divindade. Deste modo, já não era uma autêntica união entre Deus e o homem em Cristo e, portanto, já não podia falar-se de «Mãe de Deus».

A reação de Cirilo, então máximo expoente da cristologia de Alexandria, que sublinha intensamente a unidade da pessoa de Cristo, foi imediata e se deslocou com todos os meios já a partir do ano 429, entre outras coisas, enviando algumas cartas ao mesmo Nestório.

Na Segunda Carta (PG 77, 44-49) que Cirilo enviou, em fevereiro de 430, lemos uma clara afirmação do dever dos pastores de preservar a fé do Povo de Deus. Este era seu critério, válido também para hoje: a fé do Povo de Deus é expressão da tradição, é garantia da sã doutrina. Escreve estas linhas a Nestório: «É necessário expor ao povo de Deus o ensinamento e a interpretação da fé de maneira mais irrepreensível e recordar que quem escandaliza ainda que for a um só dos pequenos que crêem em Cristo, sofrerá um castigo intolerável».

Na mesma carta a Nestório, carta que mais tarde, no ano 451, teria sido aprovada pelo Concilio de Calcedônia, quarto concilio ecumênico, Cirilo descreve com clareza sua fé cristológica: «São diversas as naturezas que se uniram em uma verdadeira unidade, mas de ambas resultou um só Cristo e Filho, não porque por causa da unidade se tenha eliminado a diferença das naturezas humana e divina, mas porque humanidade e divindade reunidas de forma inefável produziram o único Senhor, Cristo, o Filho de Deus».

Isso é importante: realmente a verdadeira humanidade e a verdadeira divindade se unem em uma só Pessoa, nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, continua dizendo o bispo de Alexandria, «professamos um só Cristo e Senhor, não só no sentido de que adoramos o homem junto com o ‘Logos’, para não insinuar a idéia da separação dizendo ‘junto’, mas no sentido de que adoramos um só, pois seu corpo não é algo alheio ao ‘Logos’, com o qual está sentado à destra do Pai. Não estão sentados a seu lado dois filhos, mas um só, unido com a própria carne».

Rapidamente, o bispo de Alexandria, graças a agudas alianças, conseguiu que Nestório fosse condenado repetidamente: por parte da sede romana com uma série de doze anátemas redigidos por ele mesmo e, finalmente, pelo Concílio de Éfeso, no ano 431, o terceiro concílio ecumênico.

A assembléia, que se desenvolveu com vicissitudes tumultuosas, concluiu com o primeiro grande triunfo da devoção a Maria e com o exílio do bispo de Constantinopla, que não queria reconhecer à Virgem o título de «Mãe de Deus», por causa de uma cristologia equivocada, que criava divisão no próprio Cristo. Depois de ter prevalecido deste modo sobre o rival e sua doutrina, Cirilo soube alcançar já no ano 433 uma fórmula teológica de compromisso e de reconciliação com os de Antioquia. E isso também é significativo: por uma parte se dá a clareza da doutrina da fé, mas por outra, a intensa busca da unidade da reconciliação. Nos anos seguintes, ele se dedicou com todos os meios a defender e esclarecer sua posição teológica até a morte, ocorrida em 27 de junho do ano 444.

Os escritos de Cirilo, verdadeiramente muito numerosos e difundidos amplamente, inclusive em diferentes traduções latinas e orientais já em sua vida, prova de seu êxito imediato, são de importância primária para a história do cristianismo. São importantes seus comentários a muitos livros do Antigo e do Novo Testamento, entre os quais se destaca todo o Pentateuco, Isaías, os Salmos e os Evangelhos de João e de Lucas. São de grande importância também muitas obras doutrinais, nas quais aparece continuamente a defesa da fé trinitária contra as teses arianas e contra as de Nestório. A base do ensino de Cirilo é a tradição eclesiástica e, em particular, como mencionei, os escritos de Atanásio, seu grande predecessor na sede de Alexandria. Entre os outros escritos de Cirilo, é preciso recordar por último os livros «Contra Juliano», última grande resposta às polêmicas anti-cristãs, ditado pelo bispo de Alexandria provavelmente nos últimos anos de vida para refutar a obra «Contra os Galileus», composta muitos anos antes, em 363, pelo imperador que foi chamado de «o Apóstata» por ter abandonado o cristianismo no qual havia sido educado.

A fé cristã é antes de tudo um encontro com Jesus, «uma pessoa que dá à vida um novo horizonte» (encíclica «Deus caritas est», 1). De Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, São Cirilo de Alexandria foi uma incansável e firme testemunha, sublinhando sobretudo a unidade, como repete no ano 433, na primeira carta (PG 77, 228-237) ao bispo Sucenso: «Um só é o Filho, um só o Senhor Jesus Cristo, seja antes da encarnação ou depois da encarnação. De fato, não se trata de um filho, o ‘Logos’, nascido de Deus Pai, e de outro, nascido da santa Virgem, mas cremos que precisamente Aquele que está antes dos tempos nasceu também segundo a carne de uma mulher». Esta afirmação, muito além de seu significado doutrinal, mostra que a fé em Jesus, «Logos», nascido do Pai, está também sumamente arraigada na história, pois, como afirma São Cirilo, este mesmo Jesus entrou no tempo com o nascimento de Maria, a «Theotòkos», e estará sempre conosco, segundo sua promessa, e isso é importante: Deus é eterno, nasceu de uma mulher e continua conosco cada dia. Nesta confiança vivemos, nesta confiança encontramos o caminho de nossa vida.

São João Crisóstomo de Antioquia

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs!

Este ano se completa o décimo sexto centenário da morte de São João Crisóstomo (407-2007). João de Antioquia, chamado Crisóstomo, isto é, «Boca de ouro» por sua eloqüência, pode dizer-se que segue vivo hoje, também por suas obras. Um anônimo copista deixou escrito que estas «atravessam todo o orbe como raios fulminantes». Seus escritos também permitem a nós, como aos fiéis de seu tempo, que repetidamente se viram privados dele por causa de seus exílios, viver com seus livros, apesar de sua ausência. É tudo que ele mesmo sugeria desde o exílio em uma carta (cf. A Olimpiade, Carta 8, 45).

Nascido em torno do ano 349, em Antioquia da Síria (atualmente Antakya, no sul da Turquia), desenvolveu lá o ministério presbiteral durante cerca de onze anos, até o ano 397, quando, nomeado bispo de Constantinopla, exerceu na capital do Império o ministério episcopal antes dos dois exílios, seguidos em breve distância um do outro, entre o ano 403 e 407. Nós nos limitamos hoje a considerar os anos de Crisóstomo na Antioquia.

Órfão de pai em terna idade, viveu com sua mãe, Antusa, que lhe transmitiu uma profunda sensibilidade humana e uma profunda fé cristã. Freqüentados os estudos inferiores e superiores, coroados pelos cursos de filosofia e de retórica, teve como mestre Libânio, pagão, o mais célebre reitor do tempo. Em sua escola, João se converteu no maior orador da antiguidade tardia grega. Batizado no ano 368 e formado na vida eclesiástica pelo bispo Melécio, foi por ele instituído leitor em 371, o Asceterio, um tipo de seminário de Antioquia, junto a um grupo de jovens, alguns dos quais foram depois bispos, sob a guia do famoso exegeta Diodoro de Tarso, que encaminhou João à exegese histórico-literal, característica da tradição de Antioquia.

Ele se retirou depois durante quatro anos entre os eremitas do próximo monte Silpio. Prosseguiu aquele retiro por outros dois anos que viveu sozinho em uma gruta sob a guia de um «ancião». Nesse período se dedicou totalmente a meditar «As leis de Cristo», os Evangelhos e especialmente as Cartas de Paulo. Enfermando-se, ele se encontrou na impossibilidade de cuidar de si mesmo e por isso teve de regressar à comunidade cristã de Antioquia (cf. Palladio, Vita, 5). O Senhor – explica o biógrafo – interveio com a enfermidade no momento justo para permitir a João seguir sua verdadeira vocação. Com efeito, escreverá ele mesmo que, posto na alternativa de escolher entre o governo da Igreja e a tranqüilidade da vida monástica, teria preferido mil vezes o serviço pastoral (cf. Sobre o sacerdócio, 6, 7): precisamente a este se sentia chamado o Crisóstomo. E aqui se realizou o giro decisivo de sua história vocacional: pastor de almas a tempo integral! A intimidade com a Palavra de Deus, cultivada durante os anos da vida eremítica, havia amadurecido nele a urgência de pregar o Evangelho, de dar aos demais o que ele havia recebido nos anos de meditação. O ideal missionário o lançou assim, alma de fogo, à atenção pastoral.

Entre o ano 378 e 379, ele regressou à sua cidade. Diácono em 381 e presbítero em 386, converteu-se em célebre pregador nas igrejas de sua cidade. Pronunciou homilias contra os arianos, seguidas daquelas comemorativas dos mártires de Antioquia e de outras sobre as principais festividades litúrgicas: trata-se de um grande ensinamento da fé de Cristo, também à luz de seus Santos. O ano 387 foi o «ano heróico» de João, o da chamada «revolta das estátuas». O povo derrubou as estátuas imperiais em sinal de protesto contra o aumento dos impostos. Naqueles dias de Quaresma e de angústia por ocasião dos eminentes castigos por parte do imperador, pronunciou suas vinte e duas vibrantes Homilias das estátuas, orientadas à penitência e à conversão. Seguiu-lhe o período de serena atenção pastoral (387-397).

O Crisóstomo se situa entre os Padres mais prolíficos: dele nos chegaram 17 tratados, mais de 700 homilias autênticas, os comentários a Mateus e a Paulo (Cartas aos Romanos, aos Coríntios, aos Efésios e aos Hebreus) e 241 cartas. Não foi um teólogo especulativo. Transmitiu, ao contrário, a doutrina tradicional e segura da Igreja em uma época de controversas teológicas suscitadas sobretudo pelo arianismo, isto é, pela negação da divindade de Cristo. É, portanto, um testemunho fiável do desenvolvimento dogmático alcançado pela Igreja no século IV-V. Sua teologia é maravilhosamente pastoral; nela é constante a preocupação da coerência entre o pensamento expresso pela palavra e a vivência existencial. É este, em particular, o fio condutor das esplêndidas catequeses com as quais preparava os catecúmenos para receber o Batismo. Próximo da morte, escreveu que o valor do homem está no «conhecimento exato da verdade e na retidão na vida» (Carta desde o exílio). As duas coisas, conhecimento exato da verdade e retidão na vida, vão juntas: o conhecimento deve traduzir-se em vida. Toda intervenção sua se orientou sempre a desenvolver nos fiéis o exercício da inteligência, da verdadeira razão, para compreender e traduzir na prática as exigências morais e espirituais da fé.

João Crisóstomo se preocupa por acompanhar com seus escritos o desenvolvimento integral da pessoa, nas dimensões físicas, intelectual e religiosa. As diversas etapas do crescimento são comparadas a outros tantos mares de um imenso oceano: «O primeiro destes mares é a infância» (Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). Com efeito, «precisamente nesta primeira idade se manifestam as inclinações ao vício e à virtude». Por isso, a lei de Deus deve ser desde o princípio impressa na alma «como em um bloco de cera» (Homilia 3, 1 sobre o Evangelho de João): de fato, é esta a idade mais importante. Devemos ter presente quão fundamental é que nesta primeira fase da vida entrem realmente no homem as grandes orientações que dão a perspectiva justa à existência. Crisóstomo por isso recomenda: «Desde a mais terna idade abastecei as crianças de armas espirituais e ensinai-as a persignar-se» (Homilia 12, 7 sobre a Primeira Carta aos Coríntios). Chegam depois a adolescência e a juventude: «À infância segue o mar da adolescência, onde os ventos sopram violentos…, porque em nós cresce… a concupiscência» (Homilia 81, 5 sobre o Evangelho de Mateus). Chegam finalmente o noivado e o matrimônio: «À juventude sucede a idade da pessoa madura, na qual sobrevêm os compromissos de família: é o tempo de buscar esposa» (Ibid). Do matrimônio ele recorda os fins, enriquecendo-os – com a alusão à virtude da temperança – de uma rica trama de relações personalizadas. Os esposos bem preparados cortam assim o caminho do divórcio: tudo se desenvolve com alegria e se podem educar aos filhos na virtude. Quando nasce o primeiro filho, este é «como uma ponte; os três se convertem em uma só carne, dado que o filho reúne as duas partes» (Homilia 12, 5 sobre a Carta aos Colossenses), e os três constituem «uma família, pequena Igreja» (Homilia 20, 6 sobre a Carta aos Efésios).

A pregação do Crisóstomo acontecia habitualmente no curso da liturgia, «lugar» no qual a comunidade se constrói com a Palavra e a Eucaristia. Aqui a assembléia reunida expressa a única Igreja (Homilia 8, 7 sobre a Carta aos Romanos), a mesma palavra se dirige em todo lugar a todos (Homilia 24, 2 sobre a Primeira Carta aos Coríntios) e a comunhão eucarística se faz sinal eficaz de unidade (Homilia 32,7 sobre o Evangelho de Mateus). Seu projeto pastoral se inseria na vida da Igreja, na qual os fiéis leigos com o Batismo assumem o ofício sacerdotal, real e profético. Ao fiel leigo ele diz: «Também a ti o Batismo te faz rei, sacerdote e profeta» (Homilia 3, 5 sobre a Segunda Carta aos Coríntios). Surge daqui o dever fundamental da missão, porque cada um em alguma medida é responsável pela salvação dos demais: «Este é o princípio de nossa vida social… não interessar-nos só por nós!» (). Tudo se desenvolve entre dois pólos: a grande Igreja e a «pequena Igreja», a família, em recíproca relação.

Como podeis ver, queridos irmãos e irmãs, esta lição do Crisóstomo sobre a presença autenticamente cristã dos fiéis leigos na família e na sociedade, é hoje mais atual que nunca. Roguemos ao Senhor para que nos torne dóceis aos ensinamentos deste grande mestre da fé.

PAI DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Continuamos nossa reflexão sobre São João Crisóstomo. Após o período passado em Antioquia, no ano 397, foi nomeado bispo de Constantinopla, capital do Império romano do Oriente. Desde o início, João projetou a reforma de sua Igreja: a austeridade do palácio episcopal tinha de ser um exemplo para todos: clero, viúvas, monges, pessoas da corte e ricos.

Infelizmente, não poucos deles, tocados por seus juízos, se afastaram dele. Solícito com os pobres, João foi chamado também de «o esmoleiro». Como administrador atento, conseguiu criar instituições caritativas muito apreciadas. Sua capacidade empreendedora nos diferentes campos fez que alguns o vissem como um perigoso rival. Contudo, como autêntico pastor, tratava todos de maneira cordial e paterna. Em particular, sempre tinha gestos de ternura especial pela mulher e dedicava uma atenção particular ao matrimônio e à família. Convidava os fiéis a participar da vida litúrgica, que tornou esplêndida e atrativa com uma criatividade genial.

Apesar de sua bondade, não teve uma vida tranqüila. Pastor da capital do Império, ele se viu envolvido com freqüência nas intrigas políticas por suas contínuas relações com as autoridades e as instituições civis. No âmbito nível eclesiástico, dado que havia deposto na Ásia, no ano 401, seis bispos indignamente eleitos, foi acusado de ter superado os limites de sua jurisdição, convertendo-se em alvo de acusações fáceis. Outro pretexto de ataques contra ele foi a presença de alguns monges egípcios, excomungados pelo patriarca Teófilo de Alexandria, que se refugiaram em Constantinopla. Depois se criou uma forte polêmica causada pelas críticas de Crisóstomo à imperatriz Eudóxia e a suas cortesãs, que reagiram desacreditando-o e insultando-o. Deste modo, foi deposto, no sínodo organizado pelo próprio patriarca Teófilo, no ano 403, e condenado a um primeiro exílio breve. Após regressar, a hostilidade que suscitou por causa de seus protestos contra as festas em honra da imperatriz, que o bispo considerava como festas pagãs, luxuosas, e a expulsão dos presbíteros encarregados dos batismos na Vigília Pascoal do ano 404 marcaram o início da perseguição contra João Crisóstomo e seus seguidores, chamados «joanistas».

Então, João denunciou com uma carta os fatos ao bispo de Roma, Inocêncio I. Mas já era tarde demais. No ano 406 foi exilado novamente, esta vez em Cucusa, Armênia. O Papa estava certo de sua inocência, mas não tinha poder para ajudá-lo. Não se pôde celebrar um concílio, promovido por Roma para conseguir a pacificação entre as duas partes do Império e entre suas Igrejas. A dura viagem de Cucusa a Pitionte, destino ao qual nunca chegou, devia impedir as visitas dos fiéis e romper a resistência do prelado esgotado: a condenação ao exílio foi uma autêntica condenação à morte! São comovedoras as numerosas cartas do exílio, nas quais João manifesta suas preocupações pastorais com tons de dor pelas perseguições contra os seus. A marcha para a morte se deteve em Comana Pontica. Lá, João foi levado à capela do mártir São Basilisco, onde entregou o espírito a Deus e foi sepultado, como mártir junto ao mártir (Paládio, «Vida» 119). Era o dia 14 de setembro de 407, festa da Exaltação da Santa Cruz. A reabilitação aconteceu no ano 438, com Teodósio II. As relíquias do santo bispo, colocadas na igreja dos Apóstolos, em Constantinopla, foram transportadas no ano 1204 a Roma, na primitiva Basílica de Constantino, e jazem agora na capela do Coro dos Canônicos da Basílica de São Pedro.

Em 24 de agosto de 2004, uma parte importante da mesma foi entregue pelo Papa João Paulo II ao patriarca Bartolomeu I de Constantinopla. A memória litúrgica do santo se celebra em 13 de setembro. O beato João XXIII o proclamou padroeiro do Concílio Vaticano II.

De João Crisóstomo se disse que, quando se sentou no trono da Nova Roma, ou seja, Constantinopla, Deus fez ver nele um segundo Paulo, um doutor do universo. Na realidade, em Crisóstomo se dá uma unidade essencial de pensamento e de ação, tanto em Antioquia como em Constantinopla. Só mudam seu papel e as situações. Ao meditar nas oito obras realizadas por Deus na seqüência dos seis dias, no comentário do Gênesis, João Crisóstomo quer fazer que os fiéis se remontem da criação ao Criador: «É de grande ajuda saber o que é a criatura e o que é o Criador», diz. Ele nos mostra a beleza da criação e a transparência de Deus em sua criação, que se converte deste modo em uma espécie de «escada» para ascender a Deus, para conhecê-lo.

Mas a este primeiro passo segue outro: esse Deus criador é também o Deus da condescendência («synkatabasis»). Nós somos fracos para «ascender», nossos olhos são fracos. Deste modo, Deus se converte no Deus da condescendência, que envia ao homem caído e estrangeiro uma carta, a Sagrada Escritura. Deste modo, a criação e a escritura se completam. À luz da Escritura, da carta que Deus nos deu, podemos decifrar a criação. Deus é chamado «pai terno» («philostorgios») (ibidem), médico das almas (Homilia, 40, 3 sobre o Gênesis), mãe (ibidem) e amigo carinhoso («Sobre a Providência» 8, 11-12).

Mas ao primeiro passo da criação como «escada» para Deus, e ao segundo da condescendência de Deus, através da carta que nos deu, a Sagrada Escritura, é acrescentado um terceiro passo: Deus não só nos transmite uma carta; em definitivo, Ele mesmo desce, encarna-se, converte-se realmente em «Deus conosco», nosso irmão até a morte na Cruz.

E com estes três passos – Deus que se torna visível na criação, Deus que nos envia uma carta, Deus que desce e se converte em um de nós – chega-se finalmente a um quarto passo: na vida e ação do cristão, o princípio vital e dinâmico é o Espírito Santo («Pneuma»), que transforma a realidade do mundo. Deus entra em nossa própria existência através do Espírito Santo e nos transforma desde dentro de nosso coração.

Com este pano de fundo, precisamente em Constantinopla, João, ao comentar os Atos dos Apóstolos, propõe o modelo da Igreja primitiva (Atos 4, 32-37) como modelo para a sociedade, desenvolvendo uma «utopia» social (como uma «cidade ideal»). Tratava-se, de fato, de dar uma alma e um rosto cristão à cidade. Em outras palavras, Crisóstomo compreendeu que não é suficiente dar esmola, ajudar os pobres de vez em quando, mas é necessário criar uma nova estrutura, um novo modelo de sociedade; um modelo baseado na perspectiva do Novo Testamento. É a nova sociedade que se revela na Igreja nascente. Portanto, João Crisóstomo se converte deste modo em um dos grandes pais da Doutrina Social da Igreja: a velha idéia da «pólis» grega é substituída por uma nova idéia de cidade inspirada na fé cristã. Crisóstomo defendeu, como Paulo (cf. 1 Coríntios 8, 11), o primado de cada cristão, da pessoa enquanto tal, inclusive do escravo e do pobre. Seu projeto corrige deste modo a tradicional visão da «pólis» grega, da cidade, enquanto na cidade cristã todos são irmãos e irmãs com os mesmos direitos. O primado da pessoa é também a conseqüência do fato de que, baseando-se nela se constrói a cidade, enquanto na «pólis» grega a pátria era colocada acima do indivíduo, que ficava totalmente subordinado à cidade em seu conjunto. Deste modo, com Crisóstomo começa a visão de uma sociedade construída com a consciência cristã. Ele nos diz que nossa «pólis» é outra, «nossa pátria está nos céus» (Filipenses 3, 20) e esta nossa pátria, inclusive nesta terra, torna todos iguais, irmãos e irmãs, e nos obriga à solidariedade.

Ao final de sua vida, desde o exílio nas fronteiras de Armênia, «o lugar mais remoto do mundo», João, enlaçando com sua primeira pregação do ano 386, retomou o tema que tanto gostava do plano que Deus tem para a humanidade: é um plano «inefável e incompreensível», mas certamente guiado por Ele com amor (cf. «Sobre a providência» 2, 6). Esta é a nossa certeza. Ainda que não possamos decifrar os detalhes da história pessoal e coletiva, sabemos que o plano de Deus está sempre inspirado por seu amor. Deste modo, apesar de seus sofrimentos, João Crisóstomo reafirmava a descoberta de que Deus ama cada um de nós com um amor infinito, e por este motivo quer a salvação de todos. Por sua parte, o santo bispo cooperou com esta salvação com generosidade, sem poupar esforços, durante toda a sua vida. De fato, considerava como último fim de sua existência essa glória de Deus; já moribundo, deixou como último testamento: «Glória a Deus por tudo!» (Paládio, «Vida» 11).

Eusébio de Cesaréia

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Na história do cristianismo antigo, é fundamental a distinção entre os primeiros três séculos e os sucessivos ao Concílio de Nicéia do ano 325, o primeiro ecumênico. Entre os dois períodos está a assim chamada «mudança de Constantino» e a paz da Igreja, assim como a figura de Eusébio, bispo de Cesaréia na Palestina.

Foi o expoente mais qualificado da cultura cristã de seu tempo, em contextos muito variados, da teologia à exegese, da história à erudição. Eusébio é conhecido sobretudo como o primeiro historiador do cristianismo, mas também como o filósofo maior da Igreja antiga.

Na Cesaréia, onde provavelmente nasceu em torno do ano 260, Orígenes se havia refugiado procedente da Alexandria, e lá havia fundado uma escola e uma ingente biblioteca. Precisamente com estes livros se teria formado, uma década depois, o jovem Eusébio. No ano 325, como bispo de Cesaréia, participou com um papel de protagonista no Concílio de Nicéia. Subscreveu o «Credo» e a afirmação da plena divindade do Filho de Deus, definido por este com «a mesma substância» do Pai («homooúsios tõ Patrí»). É praticamente o mesmo «Credo» que nós rezamos todos os domingos na santa liturgia.

Sincero admirador de Constantino, que havia dado paz à Igreja, Eusébio sentiu por ele estima e consideração. Celebrou o imperador, não só em suas obras, mas também em discursos oficiais, pronunciados no vigésimo e trigésimo aniversários de sua chegada ao trono, e depois de sua morte, ocorrida no ano 337. Dois ou três anos depois também morria Eusébio.

Estudioso incansável, em seus numerosos escritos, Eusébio busca refletir e fazer um balanço dos três séculos de cristianismo, três séculos vividos sob a perseguição, recorrendo em boa parte às fontes cristãs e pagãs conservadas sobretudo na grande biblioteca de Cesaréia. Deste modo, apesar da marca objetiva de suas obras apologéticas, exegéticas e doutrinais, a fama imperecedora de Eusébio continua estando ligada em primeiro lugar aos dez livros de sua «História eclesiástica». Foi o primeiro em escrever uma história da Igreja, que segue sendo fundamental graças às fontes que Eusébio põe à nossa disposição para sempre. Com esta «história» conseguiu salvar do esquecimento numerosos acontecimentos, personagens e obras literárias da Igreja antiga. Trata-se, portanto, de uma fonte primária para o conhecimento dos primeiros séculos do cristianismo.

Podemos nos perguntar como estruturou e com que intenções redigiu esta nova obra. Ao início do primeiro livro, o historiador apresenta os argumentos que pretende enfrentar em sua obra: «Eu me propus redigir as sucessões dos santos apóstolos desde nosso Salvador até nossos dias, quanto e quão grandes foram os acontecimentos segundo a história da Igreja e quem foi distinguido em seu governo e direção nas comunidades mais notáveis, inclusive também aqueles que, em cada geração, foram embaixadores da Palavra de Deus, seja por meio da escritura ou sem ela, e os que, impulsionados pelo desejo de inovação até o erro, anunciaram-se como promotores do falsamente chamado conhecimento, devorando assim o rebanho de Cristo como lobos rapazes… e também o número, o modo e o tempo dos pagãos que lutaram contra a palavra divina e a grandeza dos que em seu tempo atravessaram, por ela, à prova de sangue e tortura; assinalando também os martírios de nosso tempo e o auxílio benigno e favorável para com todos de nosso Salvador» (1, 1, 1-2).

Desta maneira, Eusébio envolve diferentes setores: a sucessão dos apóstolos, como estrutura da Igreja, a difusão da Mensagem, os erros, as perseguições por parte dos pagãos e os grandes testemunhos que constituem a luz desta «História». Em tudo isso, resplandecem a misericórdia e a benevolência do Salvador. Eusébio inaugura assim a historiografia eclesiástica, abarcando sua narração até o ano 324, ano no qual Constantino, depois da derrota de Licínio, foi aclamado como imperador único de Roma. Trata-se do ano precedente ao grande Concílio de Nicéia, que depois oferece a «summa» do que a Igreja — doutrinal, moral e inclusive juridicamente — havia aprendido nesses trezentos anos.

A reunião que acabamos de referir do primeiro livro da «História eclesiástica» contém uma repetição que certamente é intencional. Em poucas linhas, repete o título cristológico de «Salvador», e faz referência explícita à «sua misericórdia» e à «sua benevolência». Podemos compreender assim a perspectiva fundamental da historiografia de Eusébio: é uma história «cristocêntrica», na qual se revela progressivamente o mistério do amor de Deus pelos homens. Com genuína surpresa, Eusébio reconhece que «de todos os homens de seu tempo e dos que existiram até hoje em toda a terra, só Ele é chamado e confessado como Cristo [ou seja, ‘Messias’ e ‘Salvador do mundo’], e todos dão testemunho d’Ele com este nome, seguidores, em toda a terra; é honrado como rei, é contemplado como sendo superior a um profeta e é glorificado como o verdadeiro e único sumo sacerdote de Deus; e, acima de tudo isso, é adorado como Deus por ser o Logos pré-existente, anterior a todos os séculos, e tendo recebido do Pai a honra de ser objeto de veneração. E o mais singular de tudo é que nós, que estamos consagrados a Ele, não honramos com a voz ou com os sons de nossas palavras, mas com uma completa disposição da alma, chegando inclusive a preferir o martírio por sua causa à nossa própria vida» (1, 3, 19-20).

Deste modo, aparece em primeiro lugar outra característica que será uma constante na antiga historiografia eclesiástica: a «intenção moral» que preside a narração. A análise histórica nunca é um fim em si mesmo; não só busca conhecer o passado, mas aponta com decisão à conversão, e a um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É uma guia para nós mesmos.

Desta maneira, Eusébio interpela vivamente os fiéis de todos os tempos sobre sua maneira de enfrentar as vicissitudes da história, e da Igreja em particular. Interpela também a nós: qual é nossa atitude ante as vicissitudes da Igreja? É a atitude de quem se interessa por simples curiosidade, buscando o sensacionalismo e o escândalo a toda custa? Ou é mais a atitude cheia de amor e aberta ao mistério de quem sabe pela fé que pode perceber na história da Igreja os sinais do amor de Deus e as grandes obras da salvação por ele realizadas?

Se esta é nossa atitude, temos que sentir-nos interpelados para oferecer uma resposta mais coerente e generosa, um testemunho mais cristão de vida, para deixar os sinais do amor de Deus também às futuras gerações.

«Há um mistério», não se cansava de repetir esse eminente estudioso dos Padres, o Pe. Jean Daniélou: «Há um conteúdo escondido na história… O mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade autêntica, escondida detrás das aparências… Mas esta história que Deus realiza pelo homem, não a realiza sem Ele. Ficar na contemplação das ‘grandes coisas’ de Deus significaria ver só um aspecto das coisas. Ante elas está a resposta» («Ensaio sobre o mistério da história», «Saggio sul mistero della storia», Brescia 1963, p. 182).

Muitos séculos depois, também hoje Eusébio de Cesaréia nos convida a surpreender-nos ao contemplar na história as grandes obras de Deus pela salvação dos homens. E com a mesma energia, ele nos convida à conversão da vida. De fato, ante um Deus que nos amou assim, não podemos permanecer insensíveis. A instância própria do amor é que toda a vida se oriente à imitação do Amado. Façamos tudo o que estiver a nosso alcance para deixar em nossa vida um traço transparente do amor de Deus.

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