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São Columbano da Irlanda

Por Papa Bento XVI
Tradução: Élison Santos
Fonte: Vaticano

Queridos irmãos e irmãs:

Hoje quero falar do santo abade Columbano, o irlandês mais famoso da Alta Idade Média: com razão pode ser chamado de santo «europeu», pois como monge, missionário e escritor trabalhou em vários países da Europa ocidental. Junto aos irlandeses de sua época, era consciente da unidade cultural da Europa. Em uma de suas cartas, escrita em torno do ano 600, dirigida ao Papa Gregório Magno, encontra-se pela primeira vez a expressão «totius Europae – de toda a Europa», em referência à presença da Igreja no continente (cf. Epistula I,1).

Columbano havia nascido em torno do ano 543 na província de Leinster, no sudeste da Irlanda. Educado em sua casa por ótimos professores, que o encaminharam no estudo das artes liberais, ele foi confiado depois à guia do abade Sinell, da comunidade de Cluain-Inis, na Irlanda do Norte, onde pôde aprofundar no estudo das Sagradas Escrituras.

Quando tinha cerca de 20 anos, entrou no mosteiro de Bangor, no nordeste da ilha, onde era abade Comgall, um monge conhecido por sua virtude e seu rigor ascético. Em plena sintonia com seu abade, Columbano praticou com zelo a severa disciplina do mosteiro, levando uma vida de oração, ascese e estudo. Lá foi ordenado sacerdote. A vida em Bangor e o exemplo de abade influíram em sua concepção do monaquismo, que Columbano amadureceu com o tempo e difundiu depois no transcurso de sua vida.

Aos 50 anos, seguindo o ideal ascético tipicamente irlandês da «peregrinatio pro Christo», ou seja, de tornar-se peregrino por Cristo, Columbano deixou a ilha para empreender com 12 companheiros uma obra missionária no continente europeu. Devemos recordar que a migração de povos do norte e do leste provocou um regresso ao paganismo de regiões inteiras que haviam sido cristianizadas.

Por volta do ano 590, esse pequeno grupo de missionários desembarcou na costa bretanha. Acolhidos com benevolência pelo rei dos francos da Austrásia (a atual França), só pediram um pedaço de terra sem cultivar. Foi-lhes entregue a antiga fortaleza romana de Annegray, em ruínas, recoberta pela vegetação. Acostumados a uma vida de máxima renúncia, os monges conseguiram levantar em poucos meses, das ruínas, o primeiro mosteiro. Desse modo, a reevangelização começou antes de tudo pelo testemunho de vida.

Com o cultivo da terra começaram também um novo cultivo das almas. A fama desses religiosos estrangeiros que, vivendo de oração e em grande austeridade, construíam casas, difundiu-se rapidamente, atraindo peregrinos e penitentes. Sobretudo muitos jovens pediam ser acolhidos na comunidade monástica para viver como eles esta vida exemplar que renovava o cultivo da terra e das almas. Logo tiveram de fundar um segundo mosteiro. Foi construído a poucos quilômetros, nas ruínas de uma antiga cidade termal, Luxeuil. O mosteiro se converteria em centro da irradiação monástica e missionária da tradição irlandesa no continente europeu. Erigiu-se um terceiro mosteiro em Fontaine, a uma hora de caminho para o norte.

Em Luxeuil, Columbano viveu durante quase 20 anos. Lá o santo escreveu para seus seguidores de Regula manochorum – durante um certo tempo mais difundida na Europa que a de São Bento –, perfilando a imagem ideal do monge. É a única antiga regra monástica irlandesa que hoje possuímos. Como complemento, redigiu a Regula coenobialis, uma espécie de código penal para as infrações dos monges, com castigos mais surpreendentes para a sensibilidade moderna, que só se podem explicar com a mentalidade daquele tempo e ambiente. Com outra obra famosa, titulada De poenitentiarum misura taxanda, que também escreveu em Luxeuil, Columbano introduziu no continente a confissão privada e reiterada com a penitência, que previa uma proporção entre a gravidade do pecado e a reparação imposta pelo confessor. Estas novidades suscitaram suspeitas entre os bispos da região, uma suspeita que se converteu em hostilidade quando Columbano teve a valentia de repreendê-los abertamente pelos costumes de alguns deles.

Este contraste, manifestou-se com as disputas sobre a data de Páscoa: a Irlanda seguia a tradição oriental, ao contrário da tradição romana. O monge irlandês foi convocado no ano 603 em Châlon-Saôn para prestar contas ante um sínodo de seus costumes sobre a penitência e a Páscoa. Em vez de apresentar-se ante o sínodo, mandou uma carta na qual minimizava a questão, convidando os padres sinodais a discutirem não só sobre o problema pequeno, «mas também sobre todas as normas canônicas necessárias que são descuidadas por muitos, o qual é mais grave» (cf. Epistula II, 1). Ao mesmo tempo, escreveu ao Papa Bonifácio IV – alguns anos antes já se havia dirigido ao Papa Gregório Magno (cf. Epistula I) – para defender a tradição irlandesa (cf. Epistula III).

Dado que era intransigente em questões morais, Columbano entrou em conflito também com a casa real, pois havia repreendido duramente o rei Teodorico por suas relações de adultério. Surgiu uma rede de intrigas e manobras no âmbito pessoal, religioso e político que, em 610, provocou um decreto de expulsão de Luxeuil de Columbano e de todos os monges de origem irlandesa, que foram condenados a um exílio definitivo. Escoltaram-nos até chegar ao mar e foram embarcados em um navio da corte rumo à Irlanda. Mas o barco encalhou a pouca distância da praia e o capitão, ao ver nisso um sinal do céu, renunciou à empresa e, por medo a ser maldito por Deus, voltou com os monges a terra firme. Estes, em vez de regressar a Luxeuil, decidiram começar uma nova obra de evangelização. Embarcaram no Rin e voltaram ao rio. Depois de uma primeira etapa em Tuggen, no lago de Zurich, eles se dirigiram à região de Bregenz, no lago de Costanza, para evangelizar os alemães.

Agora, pouco depois, Columbano, por causa de problemas políticos, decidiu atravessar os Alpes com a maior parte de seus discípulos. Só restou um monge, chamado Gallus. De seu mosteiro se desenvolveria a famosa abadia de Sankt Gallen, na Suíça. Ao chegar à Itália, Columbano foi recebido na corte imperial longobarda, mas logo teve de enfrentar grandes dificuldades: a vida da Igreja estava lacerada pela heresia ariana, ainda majoritária entre os longobardos por um cisma que havia separado a maior parte das Igrejas da Itália do Norte da comunhão com o bispo de Roma.

Columbano se integrou com autoridade neste contexto, escrevendo um lindo libelo contra o arianismo e uma carta a Bonifácio IV para convencê-lo a comprometer-se decididamente no restabelecimento da unidade (cf. Epistula V). Quando o rei dos longobardos, em 612 ou 613, entregou-lhes um terreno em Bobbio, no valle de Trebbia, Columbano fundou um novo mosteiro que logo se converteria em um centro de cultura comparável ao famoso de Montecasino. Lá ele concluiu seus dias: faleceu em 23 de novembro de 615 e nessa data é comemorado pelo rito romano até nossos dias.

A mensagem de São Columbano se concentra em um firme convite à conversão e ao desapego das coisas terrenas em vista da herança eterna. Com sua vida ascética e seu comportamento frente à corrupção dos poderosos, evoca a figura severa de São João Batista. Sua austeridade, contudo, nunca é um fim em si mesma, mas um meio para abrir-se livremente ao amor de Deus e corresponder com todo o ser aos dons recebidos d’Ele, reconstruindo em si a imagem de Deus e ao mesmo tempo trabalhando a terra e renovando a sociedade humana.

Diz em suas Instruções: «Se o homem utiliza retamente essas faculdades que Deus concedeu à sua alma, então será semelhante a Deus. Recordemos que devemos devolver-lhe todos os dons que nos confiou quando nos encontrávamos na condição originária. Ele nos ensinou o jeito de fazê-lo com seus mandamentos. O primeiro deles é o de amar o Senhor com todo o coração, pois Ele, em primeiro lugar, nos amou, desde o início dos tempos, antes ainda de que víssemos a luz deste mundo» (cf. Instructiones XI).

O santo irlandês encarnou realmente estas palavras em sua vida. Homem de grande cultura e rico de dons de graça, seja como incansável construtor de mosteiros, seja como pregador penitencial intransigente, dedicou todas as suas energias a alimentar as raízes cristãs da Europa que estava nascendo. Com sua energia espiritual, com sua fé, com seu amor a Deus e ao próximo, ele se converteu em um dos pais da Europa, e nos mostra hoje onde estão as raízes das quais a nossa Europa pode renascer.

Lutero e a Bíblia

Por Lluís Pifarré
Tradução: Carlos Martins Nabeto
Fonte: http://www.apologeticacatolica.org/

É opinião bastante corrente que a obra mais significativa de Lutero foi a tradução que fez das Sagradas Escrituras para a língua alemã, fato que permitiu que muitas pessoas de qualquer condição pudessem tomar conhecimento direto da Palavra de Deus. É também uma opinião, ou melhor, uma acusação bastante divulgada – e o próprio Lutero foi um dos que a propagou de maneira mais repetitiva – que a Igreja Católica, movida por um excesso de zêlo, não facilitava a leitura da Bíblia aos seus fiéis, para evitar que deformassem sua mensagem em razão da livre interpretação pessoal.

No entanto, consideramos ser esta uma acusação injusta e injustificável quando afirmada de forma impensada. Em primeiro lugar, porque é o próprio Lutero quem nos informa que ao ingressar no Convento dos Agostinianos da cidade alemã de Erfurt, movido por seu desejo de tornar-se frade, o mestre dos noviços deste Convento, fr. Johan Greffenstein, depositou em suas mãos “uma Bíblia de capa vermelha”; e que este novo noviço ficou tão entusiasmado com a sua leitura que quase a memorizou. Devemos recordar que o estudo e o conhecimento das Sagradas Escrituras era uma regra obrigatória nas comunidades religiosas e constituía a fonte fundamental de inspiração para os frades de vida ascética e contemplativa. Ao mesmo tempo, nas diversas bibliotecas das escolas, universidades e mosteiros da Idade Média, existiam Bíblias de várias edições, já que era a base do ensino teológico e elemento essencial da pregação e da liturgia. São testemunhos desta atividade bíblica os mais de 8.000 manuscritos antigos que se conservam da Vulgata latina, além do que, entre os anos de 1450 e 1522, foram impressas mais de 160 vezes a denominada “Biblia Pauperum”, tida como que o catecismo das pessoas mais simples.

A respeito da publicação de Bíblias na língua alemã, devemos ressaltar que muito antes de ser publicada a Bíblia de Lutero, já tinham sido catalogadas nada menos que 18 traduções, sendo 14 em alto alemão e 4 em baixo alemão. Delas é possível destacar a tradução completa da Bíblia, promovida no século XIV na Baviera, cuja publicação teve tão boa acolhida que o impressor Johan Mentelin a editou em outras 13 oportunidades, convertendo-a numa espécie de “Vulgata alemã”. Poderíamos acrescentar a este balanço as numerosas edições parciais dos Saltérios, Epistolários e Evangeliários, muitos deles traduzidos em diversas línguas vernáculas. Um dos inúmeros poemas populares existentes na Alemanha do século XV, intitulado “A Barca dos Loucos”, fazia referência a este dinamismo bíblico em um de seus versos: “Todos os países estão atualmente inundados das Sagradas Escrituras e daquelas coisas que afetam a saúde das almas”.

Se este conjunto de dados desmente a acusação genericamente feita contra a Igreja Católica, sobre o seu suposto desinteresse para dar a conhecer a Bíblia, será o historiador Francesc Falk quem esclarecerá melhor a falta de base destas acusações, através do seu livro “Die Babel am Ausgange del Mittelalters” (=As Bíblias Produzidas na Idade Média), publicado na Mogúncia em 1905. Nesta obra, afirma que na linha cronológica existente entre a invenção da imprensa (cerca do ano 1450) até o ano de 1520, foram traduzidas mais de 156 edições de Bíblias católicas, número que para aquela época não era nada mal. Devemos recordar também da tradução da Bíblia organizada pelo Card. Jiménez de Cisneros, publicada em 6 volumes em julho de 1517, sob a denominação “Bíblia Poliglota Complutense”, em cuja confecção interveio uma prestigiosa equipe de humanistas, filólogos e orientalistas que, entre outras coisas, tiveram o acerto de transcrever de forma paralela os textos originais do grego, hebraico e aramaico ao lado da correspondente tradução latina.

Retomando a questão de Lutero e sua tradução da Bíblia, é conveniente enquadrá-la no contexto da situação social e tecnológica do século XV na Europa, visto que graças a invenção da imprensa foi possível multiplicar as traduções da Bíblia em línguas vernáculas. Tal evento facilitou a possibilidade de pôr em contato com a Bíblia o povo simples e pouco culto, incrementando a tendência biblicista e anti-escolástica que se manifestava em muitos mosteiros e universidades alemãs do século XVI. Um dos mais importantes impulsores deste ambiente foi o famoso filólogo holandês Erasmo [de Roterdan], que em 1515 escrevia em sua “Epiclesis”: “Discordo daqueles que se opõem a que os ignorantes venham a ler as divinas letras traduzidas em língua vulgar. Desejaria que todas as moças lessem o Evangelho e as Epístolas Paulinas. E oxalá que o agricultor, com a mão no arado, fosse cantando alguma passagem da Bíblia; e fizesse o mesmo o tecelão em seu tear; e o caminhante aliviasse a fastidiosa viagem com essas histórias! Disso deveriam tratar as conversas de todos os cristãos”[1].

No mosteiro de Vintemberg, Lutero tinha lido e assimilado esta exortação de Erasmo e, querendo tornar-se braço executor do humanista holandês, proporá levar a cabo a tradução da Bíblia para dá-la a conhecer a todos os alemães. Iniciou esta tarefa traduzindo o Novo Testamento para a língua alemã, aproveitando os últimos meses que lhe restavam de sua estadia no bem equipado castelo de Wartburg, situado na comarca da Turíngia, lugar em que se escondeu ao fugir da sentença condenatória do Edito de Worms. Nesta tarefa exigente, manifestou sua capacidade de trabalho, pois em um período de três meses (de dezembro de 1521 até princípios de março de 1522, data em que saiu do esconderijo para acorrer novamente a Vintemberg), praticamente terminou a tradução do Novo Testamento.

Seis meses depois, mais concretamente em setembro de 1522, saiu impressa esta tradução do Novo Testamento, sob o título “Das Newe Testament Eutzsch, Wittemberg”, em que não aparecia nem o ano nem o nome do impressor, nem tampouco o nome de seu autor, talvez para obter uma maior difusão do livro. Nesta primeira edição foram impressos 3.000 exemplares que logo se esgotaram, pois em finais do ano seguinte já era publicada uma segunda edição. Segundo cálculos de um dos biógrafos de Lutero, Hartman Grisar, até o ano de 1527 foram feitas 16 edições em Vintemberg, sem contar as mais de 50 edições em outras cidades alemãs. Lutero efetuou a tradução alemã do Novo Testamento recorrendo aos procedimentos usados naquele tempo, que consistiam em partir da Vulgata latina, do original grego da Septuaginta [LXX] – apesar de Lutero não ser especialista na língua helênica – e também das anteriores traduções alemãs da Bíblia[2].

Levado por seu ardor evangelista, que era alimentado por suas vivências subjetivas interiores, Lutero considerava que as anteriores traduções da Bíblia não refletiam o sentido teológico que desejava dar-lhes; e considerando mais o sentido que a letra dos textos, utilizou uma linguagem tão viva, natural e popular que qualquer leitor o poderia entender sem maiores dificuldades. Com a tradução do Novo Testamento, Lutero pretendia corroborar suas próprias doutrinas e aproveitou a ocasião para acusar a Igreja de não ter entendido o autêntico Evangelho (e, de passagem, para desacreditar e injuriar o papado e a Sé Romana, especialmente através das polêmicas ilustrações que acompanhavam algumas páginas da edição, realizadas pelo famoso desenhista Lucas Cranach “o Velho”).

Quanto à tradução do Antigo Testamento, sua edição foi retardada por algum tempo, em parte devido ao insuficiente conhecimento que Lutero tinha da língua hebraica. Isto o obrigou a pedir a colaboração de uma equipe formada por ilustres auxiliares reformistas e por alguns reconhecidos lingüistas[3]. Tal como já tinha feito com o Novo Testamento, voltou a se servir da tradução grega da Septuaginta [LXX], da Vulgata latina e das antigas traduções alemãs. A tradução completa da Bíblia só foi concluída e impressa no ano de 1534 e estava dividida em 6 partes. Esta primeira edição era acompanhada de prefácios e notas marginais, juntamente com diversas gravuras (muitas delas realizadas por artistas desconhecidos) altamente ofensivas aos católicos. Esta edição teve uma boa acolhida em todas as comarcas da Alemanha, obrigando a se realizar uma nova edição no ano seguinte. Calcula-se que entre o período de 1534 e 1584 cerca de 100.000 exemplares foram vendidos, uma cifra considerável para aquela época.

Com a intenção de melhorar estas traduções, Lutero continuou revisando a sua Bíblia nos anos seguintes, auxiliado por seus clássicos colaboradores. De fato, a correção linguística da sua Bíblia supera a de muitas edições das antigas Bíblias alemãs, já que estas refletiam um alemão bastante tosco e rudimentar, que dependia dos dialetos existentes. Além disso, estas antigas traduções copiavam quase que literalmente a Vulgata [latina], reproduzindo uma série de latinismos e hebraísmos de difícil compreensão, que já não se adaptavam suficientemente à língua popular da Germânia do século XVI.

É indubitável que Lutero colocou em tensão todas as forças de seu espírito e também de seu corpo na tradução da Bíblia para o alemão, com o objetivo de não perder nenhuma de suas típicas matizes e de sua estrutura sintática. Isto lhe exigiu traduzir de forma literal e dar a muitas das frases originais das Sagradas Escrituras alguns sentidos diferentes dos tradicionais, obrigando-o a introduzir termos que não tinham correspondência com os textos originais, mudando seu significado conceitual, de modo que a Palavra de Deus passava a adquirir um sentido suspeitamente subjetivista. Lutero nos descreve o método simples e direto em que se inspirou para sua peculiar tradução: “Não se deve perguntar às sílabas da língua latina como se deve falar em alemão; deve-se na verdade perguntar à mãe de família em sua casa, às crianças da rua, ao homem comum na praça e observar-lhes a boca para comprovar como falam e, segundo tudo isto, traduzir”[4].

Os católicos, surpresos pela grande difusão da Bíblia de Lutero, tentaram contrapor a esta influência a publicação de diferentes edições da Bíblia. Talvez as mais conhecidas sejam as do dominicano Johan Dietenberger, publicada na Mogúncia em 1534 e que teve uma boa acolhida. Ainda que se ajustasse à Vulgata latina, devemos assinalar que também se beneficiava consideravelmente da tradução luterana. Outra edição da Bíblia foi a do prestigioso teólogo Johan Eck[5], “Bibel auf hochteusch verdolmetsch, Ingolstadt”, de 1537. Esta tradução era mais exata que a de Dietenberger, embora não tenha gozado de tanto sucesso, talvez por sua linguagem mais figurada, áspera e difícil. Alguns anos antes, Jeronimo Emser, falecido em 1527, havia publicado um Novo Testamento fazendo uso de uma linguagem clara e acessível, que em alguns aspectos se inspirou no estilo popular do Novo Testamento luterano.

Os adversários de Lutero o acusaram de falta de ortodoxia doutrinal e de torcer os textos sagrados para acomodá-los às sua opiniões teológicas particulares e subjetivas. O já citado Jeronimo Emser afirma que na tradução luterana do Novo Testamento havia encontrado mais de 1.400 erros e falsidades de todos os tipos. Diante destes ataques, Lutero respondia com grande arrogância: “Minha doutrina é a de Cristo e a de Cristo não é outra que a contida na Bíblia. Se me argumentam com um texto da Escritura, eu lhes responderei com Cristo, contra a letra da Escritura”[6]. A partir do ponto de vista teológico e doutrinário, são de maior gravidade as acusações que se referem à arbitrária seleção que fez do cânon dos livros bíblicos, de tal maneira que aqueles em que encontrava apoio suficiente para confirmar sua doutrina eram exaltados como verdadeiros, divinos e proféticos; ao contrário, aqueles que não expressavam esta concordância, mereciam sua rejeição. O Profeta de Vitemberg não faz cerimônias para sustentar que sua própria interpretação da Bíblia está acima, inclusive, da autoridade dos Apóstolos: “Aquele que não favorece o conhecimento de Cristo não é apostólico, ainda que o diga Pedro ou Paulo; ao contrário, aquele que prega a Cristo é apostólico, ainda que o diga Judas [Iscariotes], Anás, Pilatos e Herodes”[7].

Para Lutero, o Novo Testamento era constituído principalmente pelo Evangelho de São João e pelas Cartas de São Paulo e São Pedro; ao contrário, os três Evangelhos sinóticos não lhe mereciam muito apreço. No prólogo de uma de suas edições do Novo Testamento, escreve: “Deve-se distinguir entre livros e livros. Os melhores são o Evangelho de São João e as Epístolas de São Paulo, especialmente aquelas aos Romanos, aos Gálatas e aos Efésios, e a 1ª Epístola de São Pedro; estes são os livros que te manifestam a Cristo e te ensinam tudo o que precisas para a salvação, ainda que não conheças nenhum dos outros livros. A Epístola de São Tiago, diante destas, nada mais é que palha, pois não apresenta nenhuma marca evangélica”[8]. De outro lado, nega que a Epístola aos Hebreus pertença a São Paulo; e da Epístola de São Judas, diz que é um extrato da de São Pedro e, portanto, desnecessária. A respeito do Apocalipse, expressa sua rejeição, pois não concebe que Cristo aja como um juiz severo: “Não encontro neste livro nada que seja apostólico, nem profético”[9]. Quanto aos livros do Antigo Testamento, faz uso do mesmo procedimento arbitrariamente seletivo de aceitá-los ou rejeitá-los conforme coincidam ou não com as suas próprias interpretações teológicas[10]. Apesar disso, a Bíblia de Vitemberg seguiu seu incessável curso e continuou a ser aceita por um amplo setor do povo alemão e também dos países do norte da Europa.

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Notas:

[1] Opera Omnia, VI, 3.
[2] O texto grego que lhe serviu de base foi o “Novum Testamentum Graece”, de Nicolas Gerbel, que por sua vez dependia do “Novum Testamentum”, de Erasmo [de Roterdan]. Também se serviu das Anotações de Lorenzo Valla e das Apostilas de Nicolas de Lira.
[3] Esta equipe, que era uma espécie de “Academia Luterana”, era formada pelo helenista Felipe Melancton, o professor de exegese bíblica Gaspar Cruciger, o professor de hebraico J. Jonas, o humanista e hebraísta de Leipzig Bernat Ziegler, o pregador J. Bugenhagen e o destacado discípulo de Reuchlin, Joan Foster, autor de um dicionário de hebraico. O diácono J. Rörer era o corretor e redator do protocolo.
[4] Senbrief, 637. As citações de Lutero correspondem às O. C. da edicão de Weimar.
[5] Jonan Eck, conhecido como “o teólogo de Ingolstadt”, debateu e venceu Lutero, na famosa disputa teológica que ocorreu em Leipzig no mês de julho de 1519, na grande sala do castelo de Pleissemburg, regido então pelo duque da Saxônia, Jorge o Barbudo.
[6] WA 39, 1.
[7] Prólogo às Epístolas de Tiago e Judas (Bibel VII, 384).
[8] Prólogo do Novo Testamento de 1546 (Bibel VI, 10).
[9] (Bibel VII, 404)
[10] Do Antigo Testamento, [Lutero] rejeitará – como “livros apócrifos” – Judite, Sabedoria de Salomão, Tobias, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2Macabeus, além de algumas partes do livro de Ester e outros fragmentos [de Daniel].

Para citar este artigo:
PIFARRÉ, Lluís. Apostolado Veritatis Splendor: LUTERO E A BÍBLIA. Disponível em http://www.veritatis.com.br/article/4894. Desde 7/23/2008.

Cassiodoro de Squillace

Por Papa Bento XVI
Tradução: Élison Santos
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Quero falar hoje de (…) Cassiodoro, que [também viveu] em uma das épocas mais atribuladas do Ocidente cristão, em particular na península italiana. Odoacro, rei dos hérulos, uma etnia germânica, havia se rebelado, acabando com o império romano do Ocidente (ano 476), mas logo sucumbiu aos ostrogodos de Teodorico, que durante algumas décadas controlaram a península italiana.

Marco Aurélio Cassiodoro foi contemporâneo de Boécio. Calabrês, nascido em Squillace por volta do ano 485, morreu muito ancião em Vivarium, por volta do ano 580. Procedente também de um elevado nível social, ele se dedicou à vida política e ao compromisso cultural como poucos outros no Ocidente romano de seu tempo. Talvez os únicos que poderiam se igualar a ele neste duplo interesse eram o já recordado Boécio, e o futuro Papa de Roma, Gregório Magno (590-604).

Consciente da necessidade de não deixar no esquecimento todo o patrimônio humano e humanista acumulado nos séculos de ouro do Império Romano, Cassiodoro colaborou generosamente, nos mais elevados níveis de responsabilidade política, com os povos novos que haviam atravessado as fronteiras do Império e se haviam estabelecido na Itália. Também foi modelo de encontro cultural, de diálogo, de reconciliação. As vicissitudes históricas não lhe permitiram realizar seus sonhos políticos e culturais, que buscavam criar uma síntese entre a tradição romano-cristã da Itália e a nova cultura gótica. Aquelas mesmas vicissitudes o convenceram sobre o caráter providencial do movimento monástico, que ia se afirmando nas terras cristãs. Decidiu apoiá-lo, dedicando a isso todas as suas riquezas materiais e suas forças espirituais.

Teve a idéia de confiar precisamente aos monges a tarefa de recuperar, conservar e transmitir às gerações futuras o imenso patrimônio cultural dos antigos, para que não se perdesse. Por isto fundou Vivarium, um cenóbio no qual tudo estava organizado de maneira que se estimasse como extremamente belo e irrenunciável o trabalho intelectual dos monges. Estabeleceu também que os monges que não tinham uma formação intelectual não se dedicariam só ao trabalho material, da agricultura, mas também à transcrição dos manuscritos para que deste modo ajudassem na transmissão da grande cultural às futuras gerações.

E isso sem que fosse em detrimento algum do compromisso espiritual monástico e cristão e da atividade caritativa pelos pobres. Em seu ensinamento, distribuído em várias obras, mas sobretudo no tratado «De anima e no Institutiones divinarum litterarum», a oração (C. PL 69, col. 1108), alimentada pela Sagrada Escritura e particularmente pela meditação assídua dos Salmos (cf. PL 69, col. 1149), tem sempre um lugar central como comida necessária para todos.

Este douto calabrês introduz assim sua «Expositio in Psalterium»: «Rejeitadas e abandonadas em Ravena as solicitudes da carreira política, caracterizada pelo sabor desgostoso das preocupações mundanas, tendo desfrutado do Saltério, livro caído do céu como autêntico mel para a alma, lancei-me avidamente como um sedento para escrutá-lo e deixar-me penetrar totalmente por essa doçura saudável, depois de ter me saciado das inumeráveis amarguras da vida ativa» (PL 70, col. 10).

A busca de Deus, orientada à sua contemplação – escreve Cassiodoro –, continua sendo o objetivo permanente da vida monástica (cf. PL 69, col. 1107). Contudo, acrescenta que com a ajuda da graça divina (cf. PL 69, col. 1131.1142), pode se desfrutar melhor da Palavra revelada, utilizando as conquistas científicas e culturais «profanas» que os gregos e os romanos possuíam (cf. PL 69, col. 1140). Cassiodoro se dedicou pessoalmente aos estudos filosóficos, teológicos e exegéticos sem particular criatividade, mas prestando atenção nas intuições que considerava válidas nos demais. Lia com respeito e devoção sobretudo Jerônimo e Agostinho. Deste último, dizia: «Em Agostinho há tanta riqueza que me parece impossível encontrar algo que já não tenha sido tratado abundantemente por ele» (cf. PL 70, col. 10).

Citando Jerônimo, exortava os monges de Vivarium: «Não alcançam a palma da vitória somente aqueles que lutam até derramar o sangue ou que vivem na virgindade, mas também todos aqueles que, com a ajuda de Deus, vencem os vícios do corpo e conservam a reta fé. Mas para que possais vencer com a ajuda de Deus mais facilmente os estímulos do mundo, permanecendo nele como peregrinos em contínuo caminho, buscai antes de tudo a saudável ajuda sugerida pelo primeiro salmo, que recomenda meditar dia e noite na lei do Senhor. O inimigo não encontrará, de fato, nenhuma entrada para assaltar-vos se toda vossa atenção está ocupada em Cristo» («De Institutione Divinarum Scripturarum», 32; PL 69, col. 1147).

É uma advertência que também podemos considerar como válida para nós. Vivemos, de fato, também nós, em um tempo de encontro de culturas, de perigo de violência que destrói as culturas, e no qual é necessário o compromisso para transmitir os grandes valores e ensinar às novas gerações o caminho da reconciliação e da paz. Encontramos este caminho orientando-nos para o Deus com rosto humano, o Deus que se nos revelou em Cristo.

São Leão I Magno de Roma

Por Papa Bento XVI
Tradução: Élison Santos
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Continuando nosso caminho entre os padres da Igreja, autênticos astros que brilham de longe, no encontro de hoje nos aproximamos da figura de um Papa que em 1754 foi proclamado doutor da Igreja por Bento XIV: trata-se de São Leão Magno. Como indica o apelativo que depois a tradição lhe atribuiu, ele foi verdadeiramente um dos maiores pontífices que honraram a Sede de Roma, oferecendo uma grande contribuição para reforçar sua autoridade e prestígio. Primeiro bispo de Roma em levar o nome de Leão, adotado depois por outros doze sumos pontífices, é também o primeiro papa do qual nos chegou a pregação, dirigida ao povo que o rodeava durante as celebrações. Vem à mente espontaneamente sua lembrança no contexto das atuais audiências gerais da quarta-feira, encontros que se converteram para o bispo de Roma em uma costumeira forma de encontro com os fiéis e com os visitantes procedentes de todas as partes do mundo.

Leão havia nascido na Tuscia. Foi diácono da Igreja de Roma em torno do ano 430, e com o tempo alcançou nela uma posição de grande importância. Este papel destacado levou, no ano 440, a Gala Placidia, que nesse momento regia o Império do Ocidente, a enviar-lhe à Gália para resolver a difícil situação. Mas no verão daquele ano, o Papa Sixto III, cujo nome está ligado aos magníficos mosaicos da Basílica de Santa Maria a Maior, faleceu e foi eleito como seu sucessor Leão, que recebeu a notícia enquanto desempenhava sua missão de paz em Gália.

Após regressar a Roma, o novo Papa foi consagrado em 29 de setembro do ano 440. Iniciava deste modo seu pontificado, que durou mais de 21 anos e que foi sem dúvida um dos mais importantes na história da Igreja. Ao morrer, em 10 de novembro do ano 461, o Papa foi sepultado junto ao túmulo de São Pedro. Suas relíquias continuam custodiadas em um dos altares da Basílica Vaticana.

O Papa Leão viveu em tempos sumamente difíceis: as repetidas invasões bárbaras, o progressivo enfraquecimento no Ocidente da autoridade imperial, e uma longa crise social haviam obrigado o bispo de Roma – como sucederia com mais clareza ainda um século e meio depois, durante o pontificado de Gregório Magno – a assumir um papel destacado inclusive nas vicissitudes civis e políticas. Isto não impediu que aumentasse a importância e o prestígio da Sé Romana. É famoso um episódio da vida de Leão. Remonta-se ao ano 452, quando o Papa em Mantua, junto a uma delegação romana, saiu ao passo de Atila, o chefe dos hunos, para convencer-lhe de que não continuasse a guerra de invasão com a qual havia devastado as regiões do nordeste da Itália. Deste modo salvou o resto da península.

Este importante acontecimento depois se tornou memorável e permanece como um sinal emblemático da ação de paz desempenhada pelo pontífice. Não foi tão positivo, infelizmente, três anos depois, o resultado de outra iniciativa do Papa, que de todos modos manifestou uma valentia que ainda hoje surpreende: na primavera do ano 455, Leão não conseguiu impedir que os vândalos de Genserico, ao chegar às portas de Roma, invadiram a cidade indefesa, que foi saqueada durante duas semanas. Contudo, o gesto do Papa, que inerme e rodeado de seu clero, saiu ao passo do invasor para pedir-lhe que se detivesse, impediu ao menos que Roma fosse incendiada e conseguiu que não fossem saqueadas as basílicas de São Pedro, de São Paulo e de São João, nas quais se refugiou parte da população aterrorizada.

Conhecemos bem a ação do Papa Leão graças a seus maravilhosos sermões – conservaram-se quase cem em um latim esplêndido e claro – e a suas cartas, cerca de 150. Nestes textos, o pontífice se apresenta em toda a sua grandeza, dedicado ao serviço da verdade na caridade, através de um exercício assíduo da palavra, como teólogo e pastor. Leão Magno, constantemente requerido por seus fiéis e pelo povo de Roma, assim como pela comunhão entre as diferentes Igrejas e por suas necessidades, apoiou e promoveu incansavelmente o primado romano, apresentando-se como um autêntico herdeiro do apóstolo Pedro: os numerosos bispos, em boa parte orientais, reunidos no Concílio de Calcedônia, demonstraram que eram sumamente conscientes disso.

Celebrado em 451, com 350 bispos participantes, este Concílio se converteu na assembléia mais importante celebrada até então na historia da Igreja. Calcedônia representa a meta segura da cristologia dos três concílios ecumênicos precedentes: o de Nicéia, do ano 325, o de Constantinopla, do ano 381 e o de Éfeso, do ano 431. Já no século VI estes quatro concílios, que resumem a fé da Igreja antiga, foram comparados aos quatro Evangelhos: e o afirma Gregório Magno em uma famosa carta (I, 24), na qual declara que se deve «acolher e venerar, como os quatro livros do Santo Evangelho, os quatro concílios», porque, como continua explicando Gregório, sobre eles «se edifica a estrutura da santa fé, como sobre uma pedra quadrada». O Concílio de Calcedônia, ao rejeitar a heresia de Eutiques, que negava a autêntica natureza humana do Filho de Deus, afirmou a união em sua única Pessoa, sem confusão nem separação, das duas naturezas, humana e divina.

Esta fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, era afirmada pelo Papa em um importante texto doutrinal dirigido ao bispo de Constantinopla, o assim chamado «Tomo a Flaviano», que ao ser lido em Calcedônia, foi acolhido pelos bispos presentes com uma aclamação eloqüente, registrada nas atas do Concílio: «Pedro falou pela boca de Leão», exclamaram unidos os padres conciliares. A partir daquela intervenção e de outras pronunciadas durante a controvérsia cristológica daqueles anos, torna-se evidente que o Papa experimentava com particular urgência as responsabilidades do sucessor de Pedro, cujo papel é único na Igreja, pois «a um só apostolado se confia o que a todos os apóstolos se comunica», como afirma Leão em um de seus sermões por ocasião da festa dos santos Pedro e Paulo (83,2). E o pontífice soube exercer estas responsabilidades, tanto no Ocidente como no Oriente, intervindo em diferentes circunstâncias com prudência, firmeza e lucidez, através de seus escritos e de seus legados. Mostrava deste modo como o exercício do primado romano era necessário então, como o é hoje, para servir eficazmente a comunhão, característica da única Igreja de Cristo.

Consciente do momento histórico no qual vivia e da transição que acontecia, em um período de profunda crise, da Roma pagã à cristã, Leão Magno soube estar perto do povo e dos fiéis com a ação pastoral e a pregação. Alentou a caridade em uma Roma afetada pelas carestias, pela chegada de refugiados, pelas injustiças e pela pobreza. Enfrentou as superstições pagãs e a ação dos grupos maniqueístas. Ligou a liturgia à vida cotidiana dos cristãos: por exemplo, unindo a prática do jejum com a caridade e com a esmola, sobretudo com motivo das Quattro tempora, que caracterizam no transcurso do ano a mudança das estações. Em particular, Leão Magno ensinou a seus fiéis – e suas palavras continuam sendo válidas para nós – que a liturgia cristã não é a lembrança de acontecimentos passados, mas a atualização de realidades invisíveis que atuam na vida de cada um. Ele a sublinha em um sermão (64, 1-2) falando da Páscoa, que deve ser celebrada em todo tempo do ano, «não como algo do passado, mas como um acontecimento do presente». Tudo isso se enquadra em um projeto preciso, insiste o pontífice: assim como o Criador animou com o sopro da vida racional o homem feito no barro da terra, do mesmo modo, após o pecado original, enviou seu Filho ao mundo para restituir ao homem a dignidade perdida e destruir o domínio do diabo através da nova vida da graça.

Este é o mistério cristológico ao qual São Leão Magno, com sua carta ao Concílio de Éfeso, ofereceu uma contribuição eficaz e essencial, confirmando para todos os tempos, através desse Concílio, o que disse São Pedro em Cesaréia de Filipo. Com Pedro e como Pedro confessou: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo». Por este motivo, ao ser Deus e Homem ao mesmo tempo, «não é alheio ao gênero humano, mas é alheio ao pecado» (cf. Sermão 64). Na força desta fé cristológica, foi uma grande mensagem de paz e de amor. Desta maneira nos mostra o caminho: na fé aprendemos a caridade. Aprendamos, portanto, com São Leão Magno a crer em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, e a viver esta fé cada dia na ação pela paz e no amor ao próximo.

São Cromácio de Aquiléia

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Nas últimas catequeses, fizemos uma excursão pelas Igrejas do Oriente de língua semítica, meditando sobre Afraates, o persa, e Santo Efrém, o sírio; hoje regressamos ao mundo latino, ao norte do Império Romano, com São Cromácio de Aquiléia. Este bispo desempenhou seu ministério na antiga Igreja de Aquiléia, fervoroso centro de vida cristã situado na Décima região do Império Romano, a Venetia et Histria.

No ano 388, quando Cromácio subiu à cátedra episcopal da cidade, a comunidade cristã local já havia amadurecido uma gloriosa história de fidelidade ao Evangelho. Entre a segunda metade do século III e os primeiros anos do IV, as perseguições de Décio, de Valeriano e de Diocleciano haviam colhido um grande número de mártires. A Igreja de Aquiléia também havia tido de enfrentar, como as demais Igrejas da época, a ameaça da heresia ariana. O próprio Atanásio, o arauto da Ortodoxia de Nicéia, a quem os arianos haviam expulsado ao exílio, encontrou refúgio durante um tempo em Aquiléia. Sob a guia de seus bispos, a comunidade cristã resistiu às insídias da heresia e reforçou sua adesão à fé católica.

Em setembro do ano 381, Aquiléia foi sede de um sínodo, que reuniu cerca de 35 bispos da costa da África, do Vale do Rin, e de toda a Décima região. O sínodo pretendia acabar com os últimos resíduos de arianismo no Ocidente. No Concílio participou o presbítero Cromácio como perito do bispo de Aquiléia, Valeriano (370/1-387/8). Os anos em torno do sínodo do ano 381 representam a «idade de ouro» da comunidade de Aquiléia. São Jerônimo, que havia nascido em Dalmácia, junto com Rufino de Concórdia falam com nostalgia de sua permanência em Aquiléia (370-373), naquela espécie de cenáculo teológico que Jerônimo não hesita em definir como «tamquam chorus beatorum» (Crônica: PL XXVII, 697-698). Neste cenáculo, que em certos aspectos recorda as experiências comunitárias vividas por Eusébio de Vercelli e por Agostinho, conformam-se as personalidades mais notáveis das Igrejas do Alto Adriático.

Mas já em sua família, Cromácio havia aprendido a conhecer e a amar Cristo. Ele nos fala dela com palavras cheias de admiração; o próprio Jerônimo compara a mãe de Cromácio com a profetiza Ana, a suas irmãs com as virgens prudentes da parábola evangélica, e o próprio Cromácio e seu irmão Eusébio com o jovem Samuel (cf. Epístola VII: PL XXII, 341). Jerônimo segue dizendo: «O beato Cromácio e o santo Eusébio eram tão irmãos de sangue como pela união de ideais» (Epístola VIII: PL XXII, 342).

Cromácio havia nascido em Aquiléia no ano 345. Foi ordenado diácono e depois presbítero; por último, foi eleito pastor daquela Igreja (ano 388). Após receber a consagração episcopal do bispo Ambrósio, dedicou-se com valentia e energia a uma ingente tarefa pela extensão do campo que havia sido confiado à sua atenção pastoral: a jurisdição eclesiástica de Aquiléia, que se estendia desde os territórios da atual Suíça, Baviera, Áustria e Eslovênia, até chegar à Hungria.

É possível imaginar como Cromácio era conhecido e estimado na igreja de seu tempo por um episódio da vida de São João Crisóstomo. Quando o bispo de Constantinopla foi exilado de sua sede, escreveu três cartas a quem considerava como os mais importantes bispos do ocidente para alcançar seu apoio ante os imperadores: uma carta foi escrita ao bispo de Roma, a segunda ao bispo de Milão e a terceira ao bispo de Aquiléia, ou seja, Cromácio (Epístola CLV: PG LII, 702). Também para ele eram tempos difíceis por causa da precária situação política. Com toda probabilidade, Cromácio faleceu no exílio, em Grado, enquanto tentava escapar dos saques dos bárbaros, no mesmo ano 407, no qual também morria Crisóstomo.

Por prestígio e importância, Aquiléia era a quarta cidade da península italiana, e a nona do Império romano: por este motivo, chamava a atenção dos godos e dos hunos. Além de causar graves lutos e destruição, as invasões destes povos comprometeram gravemente a transmissão das obras dos Padres conservadas na biblioteca episcopal, rica em códices. Perderam-se também os escritos de Cromácio, que se dispersaram, e com freqüência foram atribuídos a outros autores: a João Crisóstomo (em parte, por causa de que seus dois nomes começavam da mesma forma: «Chromatius» como «Chrysostomus») ou a Ambrósio e a Agostinho; e inclusive a Jerônimo, a quem Cromácio havia ajudado muito na revisão do texto e na tradução latina da Bíblia. A redescoberta de grande parte da obra de Cromácio se deve a afortunadas vicissitudes, que permitiram nos anos recentes reconstruir um corpus de escritos bastante consistente: mais de quarenta sermões, dos quais uma dezena em fragmentos, além de aproximadamente sessenta tratados de comentário ao Evangelho de São Mateus.

Cromácio foi um sábio mestre e zeloso pastor. Seu primeiro e principal compromisso foi o de pôr-se à escuta da Palavra para ser capaz de converter-se em seu arauto: em seu ensinamento, ele sempre se baseava na Palavra de Deus e a ela regressava sempre. Alguns temas eram predominantes nele: antes de tudo, o mistério da Trindade, que contempla em sua revelação através da história da salvação. Depois está o tema do Espírito Santo: Cromácio recorda constantemente aos fiéis a presença e a ação da terceira Pessoa da Santíssima Trindade na vida da Igreja.

Mas o santo bispo enfrenta com particular insistência o mistério de Cristo. O Verbo encarnado é verdadeiro Deus e verdadeiro homem: assumiu integralmente a humanidade para entregar-lhe como dom a própria divindade. Estas verdades, repetidas com insistência, em parte em chave antiariana, levariam, cerca de cinqüenta anos depois, à definição do Concílio de Calcedônia.

O fato de sublinhar intensamente a natureza humana de Cristo leva Cromácio a falar da Virgem Maria. Sua doutrina mariológica é precisa. Devemos-lhe algumas descrições sugestivas da Virgem Santíssima: Maria é a «virgem evangélica capaz de acolher Deus»; é a «ovelha imaculada» que gerou o «cordeiro coberto de púrpura» (cf. Sermo XXIII, 3: «Scrittori dell’area santambrosiana» 3/1, p. 134).

O bispo de Aquiléia põe freqüentemente a Virgem em relação com a Igreja: ambas, de fato, são «virgens» e «mães». A eclesiologia de Cromácio se desenvolve sobretudo no comentário a Mateus. Estes são alguns dos conceitos repetidos: a Igreja é única, nasceu do sangue de Cristo; é um vestido precioso tecido pelo Espírito Santo; a Igreja está ali onde se anuncia que Cristo nasceu da Virgem, onde floresce a fraternidade e a concórdia. Uma imagem particularmente querida por Cromácio é a do barco no mar na tempestade – viveu em uma época de tempestades, como vimos: «Não há dúvida, afirma o santo bispo, de que esta nave representa a Igreja» (cf. Tract. XLII, 5: «Scrittori dell’area santambrosiana» 3/2, p. 260).

Como zeloso pastor, Cromácio sabe falar à sua gente com uma linguagem fresca, colorida e incisiva. Sem ignorar a perfeita construção latina, prefere recorrer à linguagem popular, rica de imagens facilmente compreensíveis. Deste modo, por exemplo, usando a imagem do mar, põe em relação por uma parte a pesca natural de peixes que, deixados na margem, morrem; e por outra, a pregação evangélica, graças à qual os homens são salvos das águas da morte, e introduzidos na verdadeira vida (cf. Tract. XVI, 3: «Scrittori dell’area santambrosiana» 3/2, p. 106).

Desde o ponto de vista do bom pastor, em um período difícil como o seu, flagelado pelos saques dos bárbaros, sabe pôr-se sempre ao lado dos fiéis para alentar-lhes e para abrir seu espírito à confiança em Deus, que nunca abandona a seus filhos.

Recolhemos, no final, como conclusão destas reflexões, uma exortação de Cromácio que ainda hoje continua sendo válida: «Invoquemos o Senhor com todo o coração e com toda a fé – recomenda o bispo de Aquiléia em um Sermão; peçamos-lhe que nos liberte de toda incursão dos inimigos, de todo temor dos adversários. Que não leve em conta nossos méritos, mas sua misericórdia. Que nos proteja com seu acostumado amor misericordioso, e que atue através de nós o que disse São Moisés aos filhos de Israel: ‘O Senhor lutará em vossa defesa e vós ficareis em silêncio’. Quem luta é Ele e é Ele quem vence…E para que se digne fazê-lo, temos de rezar tudo o que for possível. Ele mesmo diz pelos lábios do profeta: ‘Invoca-me no dia da tribulação; eu te libertarei e tu me glorificarás’ (Sermo XVI, 4: «Scrittori dell’area santambrosiana» 3/1, pp. 100-102).

Deste modo, precisamente no início do Advento, São Cromácio nos recorda que o Advento é tempo de oração, no qual é necessário entrar em contato com Deus. Deus nos conhece, Ele me conhece, conhece cada um de nós, Ele me ama, não me abandona. Sigamos adiante com esta confiança no tempo litúrgico recém-começado.

Mulheres a serviço do Evangelho

Por Papa Bento XVI
Tradução: Vaticano
Fonte: Vaticano

Amados irmãos e irmãs

Hoje chegámos ao fim do nosso percurso entre as testemunhas do cristianismo nascente, que os escritos neotestamentários mencionam. E usamos a última etapa deste primeiro percurso para dedicar a nossa atenção às diversas figuras femininas que tiveram um papel efectivo e precioso na difusão do Evangelho. O seu testemunho não pode ser esquecido, de acordo com o que o próprio Jesus pôde dizer da mulher que lhe ungiu a cabeça pouco antes da Paixão: “Em verdade vos digo: em qualquer parte do mundo onde este Evangelho for anunciado, há-de também narrar-se, em sua memória, o que ela acaba de fazer” (Mt 26, 13; Mc 14, 9). O Senhor quer que estas testemunhas do Evangelho, estas figuras que deram uma contribuição a fim de que aumentasse a fé nele, sejam conhecidas e a sua memória seja viva na Igreja. Podemos historicamente distinguir o papel das mulheres no Cristianismo primitivo, durante a vida terrena de Jesus e durante as vicissitudes da primeira geração cristã.

Jesus certamente, sabemo-lo, escolheu entre os seus discípulos doze homens como Pais do novo Israel, escolheu-os para “estarem com Ele e para os enviar a pregar” (Mc 3, 14). Este facto é evidente mas, além dos Doze, colunas da Igreja, pais do novo Povo de Deus, são escolhidas no número dos discípulos também muitas mulheres. Apenas brevemente posso mencionar aquelas que se encontram no caminho do próprio Jesus, a começar pela profetisa Ana (cf. Lc 2, 36-38), até à Samaritana (cf. Jo 4, 1-39), à mulher sírio-fenícia (cf. Mc 7, 24-30), à hemorroíssa (cf. Mt 9, 20-22) e à pecadora perdoada (cf. Lc 7, 36-50). Não me refiro sequer às protagonistas de algumas parábolas eficazes, por exemplo a uma dona de casa que amassa o pão (cf. Mt 13, 33), à mulher que perde a dracma (cf. Lc 15, 8-10), à viúva que importuna o juiz (cf. Lc 18, 1-8). Mais significativas para o nosso assunto são aquelas mulheres que desenvolveram um papel activo no contexto da missão de Jesus. Em primeiro lugar, o pensamento dirige-se naturalmente à Virgem Maria que, com a sua fé e a sua obra materna, colaborou de modo único para a nossa Redenção, tanto que Isabel pôde proclamá-la “bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1, 42), acrescentando: “Feliz de ti que acreditaste” (Lc 1, 45). Tornando-se discípula do Filho, Maria manifestou em Caná a confiança total nele (cf. Jo 2, 5) e seguiu-o até aos pés da Cruz, onde recebeu dele uma missão materna para todos os seus discípulos de todos os tempos, representados por João (cf. Jo 19, 25-27).

Há depois várias mulheres, que a diversos títulos gravitam em volta da figura de Jesus, com funções de responsabilidade. São exemplo eloquente disto as mulheres que seguiam Jesus para o assistir com os seus bens e das quais Lucas nos transmite alguns nomes: Maria de Magdala, Joana, Susana e “muitas outras” (cf. Lc 8, 2-3). Depois, os Evangelhos informam-nos que as mulheres, diversamente dos Doze, não abandonaram Jesus na hora da Paixão (cf. Mt 27, 56.61; Mc 15, 40). Entre elas, sobressai em particular Madalena, que não só presenciou a Paixão, mas foi também a primeira testemunha e anunciadora do Ressuscitado (cf. Jo 20, 1.11-18). Precisamente a Maria de Magdala S. Tomás de Aquino reserva a singular qualificação de “apóstola dos apóstolos” (apostolorum apostola), dedicando-lhe este bonito comentário: “Como uma mulher tinha anunciado ao primeiro homem palavras de morte, assim uma mulher foi a primeira a anunciar aos apóstolos palavras de vida” (Super Ioannem, ed. Cai 2519).

Também no âmbito da Igreja primitiva a presença feminina não é de modo algum secundária. Não insistamos sobre as quatro filhas não nomeadas do “diácono” Filipe, residentes em Cesareia Marítima e todas elas dotadas, como nos diz São Lucas, do “dom da profecia”, ou seja, da faculdade de intervir publicamente sob a acção do Espírito Santo (cf. Act 21, 9). A brevidade da notícia não permite deduções mais precisas. Aliás, devemos a São Paulo uma mais ampla documentação sobre a dignidade e sobre o papel eclesial da mulher. Ele parte do princípio fundamental, segundo o qual para os baptizados não só “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre”, mas também “não há homem nem mulher”. O motivo é que “todos somos um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28), ou seja, todos irmanados pela mesma dignidade de fundo, embora cada um tenha funções específicas (cf. 1 Cor 12, 27-30). O Apóstolo admite como algo normal que na comunidade cristã a mulher possa “profetizar” (1 Cor 11, 5), isto é, pronunciar-se abertamente sob o influxo do Espírito, contanto que isto seja para a edificação da comunidade e feito de modo digno. Portanto, a sucessiva, bem conhecida, exortação para que “as mulheres estejam caladas nas assembleias” (1 Cor 14, 34) deve ser antes relativizada. Deixemos aos exegetas o consequente problema, muito discutido, da relação entre a primeira palavra as mulheres podem profetizar na assembleia e a outra não podem falar da relação entre estas duas indicações aparentemente contraditórias. Não se pode discuti-lo aqui. Na quarta-feira passada já encontrámos a figura de Prisca ou Priscila, esposa de Áquila, que em dois casos é surpreendentemente mencionada antes do marido (cf. Act 18, 18; Rm 16, 3): de qualquer maneira, ambos são explicitamente qualificados por Paulo como seus sun-ergoús, “colaboradores” (Rm 16, 3).

Outros relevos não podem ser descuidados. É necessário reconhecer, por exemplo, que a breve Carta a Filémon é na realidade endereçada por Paulo também a uma mulher chamada “Ápfia” (cf. Fm 2). Tradições latinas e sírias do texto grego acrescentam a este nome “Ápfia” o apelativo de “irmã caríssima” (Ibidem) e deve-se dizer que na comunidade de Colossos ela devia ocupar um lugar de relevo; de qualquer forma, é a única mulher mencionada por Paulo entre os destinatários de uma sua carta. Noutro lugar, o Apóstolo menciona uma certa “Febe”, qualificada como diákonos da Igreja de Cêncreas, a pequena cidade portuária a leste de Corinto (cf. Rm 16, 1-2).

Embora o título naquele tempo não tenha um específico valor ministerial de tipo hierárquico, ele expressa um verdadeiro e próprio exercício de responsabilidade desta mulher em favor daquela comunidade cristã. Paulo recomenda que seja recebida cordialmente e assistida “nas actividades em que precisar de vós”; depois, acrescenta: “Pois também ela tem sido uma protectora para muitos e para mim pessoalmente”. No mesmo contexto epistolar, o Apóstolo recorda com traços de delicadeza outros nomes de mulheres: uma certa Maria, depois Trifena, Trifosa e a “querida” Pérside, além de Júlia, das quais escreve abertamente que “se afadigaram por vós” ou “que se afadigaram pelo Senhor” (Rm 16, 6.12a.12b.15), ressaltando assim o seu forte compromisso eclesial. Depois, na Igreja de Filipos deviam distinguir-se duas mulheres chamadas “Evódia e Síntique” (Fl 4, 2): a exortação que Paulo faz à concórdia recíproca deixa entender que as duas mulheres tinham uma função importante no interior daquela comunidade.

Em síntese, a história do cristianismo teria tido um desenvolvimento muito diferente, se não houvesse a generosa contribuição de muitas mulheres. Por isso, como pôde escrever o meu venerado e querido Predecessor João Paulo II na Carta Apostólica Mulieris dignitatis, “a Igreja rende graças por todas e cada uma das mulheres… A Igreja agradece todas as manifestações do “génio” feminino, surgidas no curso da história, no meio de todos os povos e nações; agradece todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de Deus, todas as vitórias que deve à fé, à esperança e à caridade das mesmas: agradece todos os frutos de santidade feminina” (n. 31). Como se vê, o elogio diz respeito às mulheres ao longo da história da Igreja, e é expresso em nome de toda a comunidade eclesial. Também nós nos unimos a este apreço, dando graças ao Senhor porque Ele conduz a sua Igreja, de geração em geração, valendo-se indistintamente de homens e mulheres, que sabem frutificar a sua fé e o seu baptismo, para o bem de todo o Corpo eclesiástico, para maior glória de Deus.

Judas Iscariotes e Matias

Por Papa Bento XVI
Tradução: Vaticano
Fonte: Vaticano

Queridos irmãos e irmãs!

Terminando hoje de percorrer a galeria de retratos dos Apóstolos chamados directamente por Jesus durante a sua vida terrena, não podemos omitir de mencionar aquele que é sempre nomeado por último nas listas dos Doze: Judas Iscariotes. A ele queremos associar a pessoa que depois é eleita para o substituir, Matias.

Já o simples nome de Judas suscita entre os cristãos uma reacção instintiva de reprovação e de condenação. O significado do apelativo “Iscariotes” é controverso: a explicação mais seguida compreende esta palavra como “homem de Queriot” referindo-se à sua aldeia de origem, situada nas vizinhanças de Hebron e mencionada duas vezes na Sagrada Escritura (cf. Js 15, 25; Am 2, 2).

Outros interpretam-no como variação da palavra “sicário”, como se aludisse a um guerrilheiro armado com um punhal que em latim se chama sica. Por fim, há quem veja no sobrenome a simples transcrição de uma raiz hebraico-aramaica que significa: “aquele que estava para o entregar”. Esta designação encontra-se duas vezes no IV Evangelho, ou seja, depois de uma confissão de fé de Pedro (cf. Jo 6, 71) e depois durante a unção de Betânia (cf. Jo 12, 4). Outras passagens mostram que a traição estava a ser realizada, dizendo: “aquele que o traía”; assim, durante a Última Ceia, depois do anúncio da traição (cf. Mt 26, 25) e depois no momento do aprisionamento de Jesus (cf. Mt 26, 46.48; Jo 18, 2.5). Ao contrário, as listas dos Doze recordam a traição como uma coisa já efectuada: “Judas Iscariotes, o que o traiu”, assim diz Marcos (3, 19); Mateus (10, 4) e Lucas (6, 16) usam fórmulas equivalentes. A traição como tal aconteceu em dois momentos: antes de tudo no planeamento, quando Judas se põe de acordo com os inimigos de Jesus por trinta moedas de prata (cf. Mt 26, 14-16), e depois na execução com o beijo dado ao Mestre no Getsémani (cf. Mt 26, 46-50). Contudo, os evangelistas insistem sobre a qualidade de apóstolo, que competia a Judas para todos os efeitos: ele é repetidamente chamado “um dos Doze” (Mt 26, 14.47; Mc 14, 10.20; Jo 6, 71) ou “do número dos Doze” (Lc 22, 3). Aliás, por duas vezes Jesus, dirigindo-se aos Apóstolos e falando precisamente dele, indica-o como “um de vós” (Mt 26, 21; Mc 14, 18; Jo 6, 70; 13, 21). E Pedro dirá de Judas que “era do nosso número e tinha recebido o nosso mesmo ministério” (Act 1, 17).

Trata-se portanto de uma figura pertencente ao grupo dos que Jesus tinha escolhido como companheiros e colaboradores íntimos. Isto suscita duas perguntas na tentativa de dar uma explicação aos acontecimentos que se verificaram. A primeira consiste em perguntar como aconteceu que Jesus tenha escolhido este homem e nele tenha confiado. Apesar de Judas ser de facto o ecónomo do grupo (cf. Jo 12, 6b; 13, 29a), na realidade é qualificado também como “ladrão” (Jo 12, 6a). Permanece o mistério da escolha, também porque Jesus pronuncia um juízo muito severo sobre ele: “ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue” (Mt 26, 24).

Torna-se ainda mais denso o mistério acerca do seu destino eterno, sabendo que Judas “se arrependeu e restituiu as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e aos idosos, dizendo: “Pequei, entregando sangue inocente”” (Mt 27, 3-4). Mesmo se em seguida ele se afastou para se ir enforcar (cf. Mt 27, 5), não compete a nós julgar o seu gesto, substituindo-nos a Deus infinitamente misericordioso e justo.

Uma segunda pergunta refere-se ao motivo do comportamento de Judas: porque traíu Jesus? A questão é objecto de várias hipóteses. Alguns recorrem ao factor da sua avidez de dinheiro; outros dão uma explicação de ordem messiânica: Judas teria ficado desiludido ao ver que Jesus não inseria no seu programa a libertação político-militar do seu próprio País. Na realidade os textos evangélicos insistem sobre outro aspecto: João diz expressamente que “tendo já o diabo metido no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que O entregasse” (Jo 13, 2); analogamente escreve Lucas: “Entrou satanás em Judas, chamado Iscariotes que era do número dos Doze” (Lc 22, 3).

Desta forma, vai-se além das motivações históricas e explica-se a vicissitude com base na responsabilidade pessoal de Judas, o qual cedeu miseravelmente a uma tentação do maligno. A traição de Judas permanece, contudo, um mistério. Jesus tratou-o como um amigo (cf. Mt 26, 50), mas, nos seus convites a segui-lo pelo caminho das bem-aventuranças, não forçava as vontades nem as preservava das tentações de satanás, respeitando a liberdade humana.

De facto, as possibilidades de perversão do coração humano são verdadeiramente muitas. O único modo de as evitar consiste em não cultivar uma visão das coisas apenas individualista, autónoma, mas ao contrário em colocar-se sempre de novo da parte de Jesus, assumindo o seu ponto de vista. Devemos procurar, dia após dia, estar em plena comunhão com Ele. Recordemo-nos de que também Pedro se queria opor a ele e ao que o esperava em Jerusalém, mas recebeu uma forte reprovação: “Tu não aprecias as coisas de Deus, mas só as dos homens” (Mc 8, 32-33)!

Pedro, depois da sua queda, arrependeu-se e encontrou perdão e graça. Também Judas se arrependeu, mas o seu arrependimento degenerou em desespero e assim tornou-se autodestruição. Para nós isto é um convite a ter sempre presente quanto diz São Bento no final do fundamental capítulo V da sua “Regra”: “Nunca desesperar da misericórdia divina”.

Na realidade Deus “é maior que o nosso coração”, como diz São João (1 Jo 3, 20). Por conseguinte, tenhamos presente duas coisas. A primeira: Jesus respeita a nossa liberdade. A segunda: Jesus espera a nossa disponibilidade para o arrependimento e para a conversão; é rico de misericórdia e de perdão. Afinal, quando pensamos no papel negativo desempenhado por Judas devemos inseri-lo na condução superior dos acontecimentos por parte de Deus. A sua traição levou à morte de Jesus, o qual transformou este tremendo suplício em espaço de amor salvífico e em entrega de si ao Pai (cf. Gl 2, 20; Ef 5, 2.25).

O Verbo “trair” deriva de uma palavra grega que significa “entregar”. Por vezes o seu sujeito é inclusivamente Deus em pessoa: foi ele que por amor “entregou” Jesus por todos nós (cf. Rm 8, 32). No seu misterioso projecto salvífico, Deus assume o gesto imperdoável de Judas como ocasião da doação total do Filho para a redenção do mundo.

Em conclusão, queremos recordar também aquele que depois da Páscoa foi eleito no lugar do traidor. Na Igreja de Jerusalém a comunidade propôs dois para serem sorteados: “José, de apelido Barsabas, chamado justo, e Matias” (Act 1, 23). Foi precisamente este o pré-escolhido, de modo que “foi associado aos onze Apóstolos” (Act 1, 26). Dele nada mais sabemos, a não ser que também tinha sido testemunha de toda a vicissitude terrena de Jesus (cf. Act 1, 21-22), permanecendo-lhe fiel até ao fim. À grandeza desta sua fidelidade acrescenta-se depois a chamada divina a ocupar o lugar de Judas, como para compensar a sua traição. Tiramos disto mais uma lição: mesmo se na Igreja não faltam cristãos indignos e traidores, compete a cada um de nós equilibrar o mal que eles praticam com o nosso testemunho transparente a Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.

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