Autor: José Miguel Arráiz
Fonte: http://infocatolica.com/blog/
Trad.: Carlos Martins Nabeto
Um leitor da Costa Rica me escreveu preocupado com o que lhe estão ensinando na sua paróquia em um curso de “Introdução à Eclesiologia”, ministrado pelo professor Luis Boschini López. Trata-se da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, na cidade de Goicoechea, distrito de Guadalupe, província de São José de Costa Rica.
Tal como me comentou este nosso amigo, algumas das afirmações do professor deixaram diversos alunos bastante desconcertados:
1) As palavras do Evangelho ao apóstolo Pedro – “E eu, da minha parte, te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Hades não prevalecerão contra ela. A ti te darei as chaves do Reino dos Céus; e o que atares na terra será atado nos céus, e o que desatares na terra será desatado nos céus” (Mateus 16,18-19) – são um acréscimo posterior ou uma interpolação tardia do século II ou III; consequentemente, não fazem parte do texto bíblico original.
2) Pedro não foi o primero Papa; nunca esteve em Roma; e Jesus nunca lhe entregou quaisquer chaves do Reino dos Céus.
Para justificar que seu ensino é “católico”, o professor escreveu por e-mail aos seus alunos:
“Diante de um comentário que me remeteu um de vocês, pedindo mais detalhes acerca do tema de que Pedro não foi o primeiro líder da Igreja, envio-lhes o seguinte:
a) O melhor comentário atual de São Mateus, que dedica várias páginas ao texto citado, é de um professor alemão, Ulrich Luz: http://es.scribd.com/mobile/
b) Da mesma forma, anexo um escrito de Pablo Richard, chileno radicado em nosso país, sacerdote e teólogo, considerado um dos melhores biblistas do nosso país. Inclusive, deu cursos e palestras na Universidade de La Salle.
Observem que os dois documentos apontam que Pedro não foi o primeiro cabeça da Igreja e, segundo, que houve acréscimo. Estes são dois documentos sérios e de peso; porém, vocês podem pesquisar no ‘Google Scholar’, que é onde se encontram documentos de pessoas preparadas.”
Passarei agora a analisar esses argumentos.
1) Mateus 16,18-19 é uma interpolação?
O tema das interpolações na Sagrada Escritura é bem extenso; e fica ainda mais complicado porque há textos “incômodos”, que para alguns, por razões ideológicas, são difíceis de se aceitarem, razão pela qual atribuí-los a um acréscimo posterior resulta como solução fácil. Há outros textos, no entanto, para os quais há evidência certa de que foram interpolados e, por isso, foram removidos de diversas edições críticas da Bíblia.
No caso do texto em questão, não há evidências de que o mesmo foi interpolado, eis que tal como o conhecemos hoje encontra-se em TODOS os códices e versões mais antigas existentes; da mesma maneira, é citado pelos autores mais antigos da Cristandade e, por isso mesmo, o encontramos unanimemente nas traduções antigas e modernas da Bíblia, tanto católicas quanto protestantes.
A aqueles que queiram estudar mais a fundo o tema das interpolações, sugiro consultar os dois artigos que Pato Acevedo (meu colega blogueiro em Infocatólica) escreveu no seu blog:
– O lucrativo negócio das interpolações[1]
– O negócio das interpolações (Parte 2)[2]
No tocante a Mateus 16,18-19 e sua possível interpolação, sugiro ainda ler a resposta do sacerdote e teólogo Miguel Ángel Fuentes:
– São originais os versículos de Mateus 16,18-19?[3]
Em resumo: se alguém, além de razões ideológicas e meras suposições, possui uma evidência real e tangível para excluir Mateus 16,18-19 do texto bíblico, que publique o seu próprio texto crítico das Sagradas Escrituras e veja se lhe tomam a sério. Porém, enquanto não for assim, melhor agir como diz o ditado: “É melhor ficar calado”.
2) Argumento de autoridade X falácia de autoridade
Por outro lado, salta à vista que o professor, ao invés de apresentar provas, sustenta sua argumentação naquilo que ele considera “documentos de peso”, constante de um comentário bíblico do teólogo protestante de tendência liberal Ulrich Luz, e de um sacerdote católico chileno Pablo Richard, ligado à Teologia da Libertação.
A primeira coisa que me chamou a atenção é: por que um professor que compartilha cursos em uma paróquia católica considera que um comentário bíblico protestante é o melhor comentário bíblico da atualidade sobre o Evangelho de Mateus? Por que considerá-lo melhor – por exemplo – do que o “Comentário do Evangelho de Mateus”, do professor Josef Schmid, acadêmico católico de origem alemã, cuja obra editada e publicada pela Editora Herder conta com as devidas licenças eclesiásticas? Se se vai estudar a primazia de Pedro na Igreja primitiva, por que não recorrer a historiadores católicos que têm obras especializadas sobre o tema, como “O Pontificado Romano na História”, de José Orlandis, que foi catedrático de História do Direito da Universidade de Zaragoza, Decano da Faculdade de Direito Canônico e primeiro Diretor do Instituto de História da Igreja, que escreveu mais de 200 trabalhos e mais de 20 livros, e foi considerado um dos mais importantes historiadores católicos da atualidade?
Obviamente, eu poderia citar mais bibliografia católica contradizendo suas teses, já que abundantíssima, porém seria perder de vista o erro principal da argumentação: a de que a autoridade (ou “o peso”, como a chama este professor) na Igreja Católica não reside em tal ou qual comentário bíblico, mas no ensino da Igreja Católica por seu Magistério.
Com efeito, quem se auto-intitula “católico”, mesmo sendo teólogo e sacerdote, porém sustenta postulados contrários à fé – como sustentam estes autores – simplesmente já não pode ser tido como católico. Ou é tão “católico” quanto podem ser outros teólogos que infiltram suas próprias obras nas livrarias católicas, mas que nem sequer deveriam ser considerados como “cristãos”, já que negam a divinidade de Cristo, a realidade da sua ressurreição e dos seus milagres, a historicidade dos Evangelhos e tudo mais quanto sua falta de fé lhes impede crer.
Em suma: se o trunfo do professor reside no fato de haver dois acadêmicos que apoiam as suas opiniões heterodoxas, tal argumento não passa de uma falácia de autoridade, que se caracteriza pelo fato de confundir realmente onde se encontra a autoridade na Igreja, e também pelo fato de que, inclusive sob sua própria lógica, ser possível encontrar abundantíssima bibliografia católica contradizendo as suas teses.
E isso sem contar que não é sensato apresentar aos seus alunos bibliografia protestante em um curso de Eclesiologia Católica, oferecendo-lhes “gato por lebre”. É questão de bom senso que se eu vou à minha paróquia CATÓLICA para estudar Eclesiologia CATÓLICA, o mínimo que eu espero é que façam uso de uma bibliografia CATÓLICA. Portanto, o que mais devemos esperar? Que apresentem a nossas crianças as revistas [anticatólicas] da Chick Publications como suplementos infantis catequéticos?
3) Pablo Richard e sua visão “global e libertadora” do Evangelho de Mateus
Deixando agora o comentário bíblico protestante (que ao professor Luis Boschini lhe parece a “joia da coroa”), analisarei os argumentos de Pablo Richard, o qual é sim sacerdote católico. Eis aqui um extrato da sua Introdução (os negritos são meus):
– “O Evangelho de Mateus foi o evangelho mais comentado na história da Igreja; porém, ao mesmo tempo, é também o evangelho cuja interpretação é normalmente a mais dogmática e espiritualista. A força e a mensagem deste evangelho é tão grande e o projeto de Igreja que propõe é tão exigente, que nenhuma Igreja pode tolerá-lo em seu sentido literal, histórico e espiritual autênticos. A Igreja Católica, sobretudo após a reforma constantiniana e o surgimento da Cristandade ocidental (século IV), evoluiu em sentido contrário ao mais original deste evangelho. A Igreja só pode entender e interpretar um evangelho quando é capaz de vivê-lo. Quando não pode vivê-lo, ignora-o ou espiritualiza-o. A tradição sacralizou dentro do Evangelho de Mateus aquela frase de Jesus: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja’ (16,18). Esta sentença converteu-se no cânon dentro do cânon. Todo o Evangelho foi lido, a partir daqui, com um sentido dogmático, autoritário, patriarcal e hierárquico: se fez de Pedro o primeiro Papa e se institucionalizou a Igreja com um esquema totalmente alheio à tradição e ao texto do Evangelho de Mateus. Por tudo isto, é tão importante resgatar o sentido original do Evangelho, para confrontar a Igreja com a utopia de suas origens” (Pablo Richard, “O Evangelho de Mateus: uma visão libertadora”, Introdução).
Vale a pena pontualizar que este autor não afirma que o texto de Mateus 16,18 foi interpolado, mas que foi interpretado em um sentido “dogmático, autoritário, patriarcal e hierárquico”, que acabou obscurecendo o sentido original do Evangelho. Diferenciemos entre ambos os argumentos: uma coisa é dizer que o texto é falso; outra, que foi mal-interpretado.
Por outro lado, tornam-se evidentes certos preconceitos da parte do autor, que são melhor compreendidos quando se conhece o contexto de que se trata de um teólogo ligado à Teologia da Libertação. Um preconceito que se expressa em um certo farisaísmo quando se coloca ele como quem possui uma visão libertadora do Evangelho de Mateus, enquanto que ao mesmo tempo afirma que “nenhuma Igreja pode tolerá-lo em seu sentido literal, histórico e espiritual autênticos”. Atribuir a si o rótulo de espiritualidade enquanto atribui a outros o rótulo de autoritários não é um bom indício de humildade e objetividade.
Muito menos se, como ele mesmo afirma, pretende confrontar o ensino da Igreja. Quanto a isto, também é um absurdo: um professor tentando apresentar a seus alunos, como ensino da Igreja, uma fonte que reconhece que visa confrontar a Igreja.
Vamos agora para a objeção de que todo o Evangelho de Mateus foi lido a partir de Mateus 16,18-19 “com um sentido dogmático, autoritário, patriarcal e hierárquico”.
Para compreender em que sentido isto é correto e em que sentido não, devemos ir às fontes e estudar como os cristãos têm entendido esse texto ao longo da História. E o poderíamos resumir em duas perguntas:
– Ao longo da História, os cristãos entenderam o texto de Mateus 16,18 em sentido dogmático e hierárquico?
Sim.
– Ao longo da História, os cristãos entenderam o texto de Mateus 16,18 SOMENTE em sentido dogmático e hierárquico?
Não.
E é aqui onde desde suas origens a exegese católica se tem distinguido de outras exegeses posteriores, como a protestante: compreendendo que de um mesmo texto pode-se extrair muitos ensinamentos que não necessariamente são contraditórios entre si.
O Protestantismo, ao ler esse texto do Evangelho, tem alegado tradicionalmente que deve ser comprendido no contexto da conversa prévia entre Jesus e Pedro, onde o Senhor Jesus lhe pergunta quem é Ele e este lhe responde que é o Messias, o Filho do Deus vivo. Jesus, por sua vez, lhe responde que é bem-aventurado porque isto lhe foi revelado pelo próprio Pai celeste (vv.15-17). Neste ponto, o Protestantismo argumenta que todo o demais deve ser compreendido a partir desde acontecimento; e daí concluem que Pedro não se diferencia de nenhum outro cristão que professe também a sua fé em Cristo como o Messias.
Na Igreja Católica, ao contrário, se tem compreendido o texto em um contexto mais amplo, aceitando que ainda que seja certo que Pedro proclamou em alta voz a identidade de Jesus, também é certo que Jesus lhe devolveu o gesto identificando-o como a pedra sobre a qual edificaria a sua Igreja, ao mesmo tempo que confirma sua autoridade, conferindo-lhe as chaves do reino dos céus.
Não se trata pois de colocar ambas as interpretações em conflito, mas de entendê-las de uma maneira harmônica. Nem somente Pedro identificou a Jesus, nem somente Jesus identificou a Pedro, pois ocorreram AMBAS as coisas. E ambos os fatos têm relação: Pedro foi eleito como o primeiro entre os discípulos em virtude de sua fé. A fé é um dom de Deus e o serviço também o é. Deus, que concedeu a Pedro o dom da fé, também lhe concedeu o dom de servir para confirmar os seus irmãos na fé, assim como concedeu aos Apóstolos acompanhá-lo no ministério do apostolado.
É certo que os primeiros cristãos e Pais da Igreja, tanto ANTES quanto DEPOIS do reinado do imperador Constantino, entenderam esses textos em ambos os sentidos e de forma complementar. É evidente que houve, naturalmente, um desenvolvimento teológico; porém, assumir que apenas o fizeram em um sentido apenas se pode explicar ou pela ignorância ou pelo preconceito. Sugiro, quanto a isto, ler “Mateus 16,18 e os Pais da Igreja”[4]; aí encontrará uma variada recompilação de textos de diversas épocas onde os Pais da Igreja interpretam esse texto de maneira harmônica e em diferentes sentidos.
Não é pois o “aut-aut” protestante (isto OU aquilo) mas do “et-et” católico (isto E aquilo). Tampouco se trata de ser “espiritual” ou “dogmático”, assim como tampouco a autoridade exclui o serviço, como se fossem conceitos excludentes. O problema o têm aqueles que, por seu rejeição à autoridade, têm alergia ao dogma, como se os grandes Santos não tivessem aceitado e professado todas as verdades da fé e não tivessem sido também testemunhas vivas da espiritualidade cristã.
Por tudo, solicito ao professor Luis Boschini López que, por gentileza, deixe de difundir entre os seus alunos teologia liberal protestante disfarçada de eclesiologia católica; e peço também ao seu Pároco e, em última instância, ao seu Bispo, que tomem providências no assunto.
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NOTAS:
[1] Original em espanhol: http://infocatolica.com/blog/
[2] Original em espanhol: http://infocatolica.com/blog/
[3] Original em espanhol: http://www.teologoresponde.
[4] Original em espanhol: http://www.