Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
SÃO PAULO, quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – VI do Tempo Comum Eclo 15, 16-21; 1 Cor 2,6-10; Mt 5, 17-37 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes – São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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VI DOMINGO DO TEMPO COMUM
Leituras: Eclo 15, 16-21; 1 Cor 2,6-10; Mt 5, 17-37
“Não penseis que eu vim para abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir mas para dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17).
Esta é uma afirmação fundamental de Jesus sobre sua missão; ao mesmo tempo é o cerne da profissão de fé da Igreja sobre a identidade e a função messiânica do próprio Jesus. É a chave hermenêutica a partir da qual devemos entender e viver a Boa-nova de Jesus. Nessa afirmação aparece bem como toda a história esteja ordenada ao Cristo e como nele ela encontra o seu centro e a sua plena realização.
Ao longo do evangelho de Mateus ocorre com freqüência a frase “Isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor tinha dito pelo profeta” (cf. Mt 1, 22; 2,15.17.23). A intenção do evangelista está clara: Ele quer sublinhar que na vida e no ensinamento de Jesus está se revelando e cumprindo o desígnio de salvação de Deus, prometido e iniciado através dos acontecimentos dos patriarcas e das palavras dos profetas do AT, por meio da aliança e do dom da Torá.
O próprio Jesus, para iluminar e sustentar a fé dos discípulos profundamente perturbados em razão dos trágicos acontecimentos da paixão e morte em Jerusalém, com carinho e vigor destaca: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos. Então abriu-lhes a mente para que entendessem as escrituras” (Lc 24, 44-45).
Ao celebrar a memória da páscoa de Jesus, morto e ressuscitado, a cada domingo, a Igreja nos faz viver em maneira nova este encontro revelador com o Senhor ressuscitado. À sua luz se iluminam nossas angústias e nossas perguntas incessantes sobre nós mesmos e a nossa condição de seus discípulos, às vezes desanimados diante das incongruências da vida.
Ao escutar as palavras de Jesus no evangelho de hoje, podemos bem compreender que no centro do ensino proporcionado para os discípulos, assim como nas disputas acirradas com os escribas e os fariseus que o acusavam de não respeitar a Lei e as tradições dos antigos pais, não está simplesmente em jogo a questão da observância dos preceitos da Lei de Moisés ou dos costumes tradicionais, mas a relação profunda com a pessoa do próprio Jesus e com o projeto original de Deus para com Israel e a humanidade inteira. Um projeto de vida, de autenticidade e de libertação de toda dissimulação consigo mesmo, com os demais e com Deus.
Jesus, o “homem novo”, o “novo Adão” (cf. Rm 5, 15 -19), realiza o desígnio do Pai segundo seu projeto original sobre o homem/mulher, e abre o caminho para também nós entrarmos na dinâmica do homem novo. Da relação autêntica com a pessoa de Jesus, vivenciada na fé, brotam no discípulo, a energia vital e os critérios que orientam do interior o estilo novo da sua vida, moldada pelo Espírito no seu exemplo. Ao conhecer e ao amar a Jesus, os preceitos e os critérios novos para agir, brotam da raiz do coração renovado. Abrem um processo que antecipa a plenitude da vida divina em nós. “A fé – afirma São Boaventura – é o conhecimento de Jesus Cristo, donde se origina a firmeza e a compreensão de toda a escritura… Ela foi escrita não apenas para que crêssemos, mas para que possuíssemos a vida eterna, onde veremos, amaremos, e teremos satisfeitos todos os nossos desejos” (Brevilóquio, 5, 201; LH III, pg. 151; 152).
Quando a experiência espiritual amadurece assim, os mandamentos de Deus não são mais leis ditadas ou impostas do exterior ao discípulo. Elas estão inscritas pelo Espírito no tecido vivo da consciência, segundo a profecia de Jeremias sobre a nova aliança: “Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31, 33).
A partir da sua experiência pessoal de total adesão ao Pai na obediência do amor, Jesus, seguindo a linha dos grandes profetas, reivindica a interiorização da lei e do culto, a fim de que estes correspondam ao sincero compromisso na vida. Pois, infelizmente, pode acontecer o paradoxo de uma vida formalmente condizente com as leis e as “tradições sagradas”, mas de fato em contradição radical com as exigências elementares de uma autêntica relação com Deus: “Vós sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus, a fim de guardar as vossas tradições… Assim vós esvaziais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis” (Mc 7, 9.13).
Terrível esta admoestação de Jesus, que não acaba de ressoar na consciência dos discípulos! Pois a latente tensão entre formas exteriores e qualidade efetiva da vida acompanha o “homem religioso” em todo tempo. Palavras que constituem um ponto de referência substancial, para um constante exame de consciência individual e comunitário. Para um caminho de autêntica libertação.
A passagem do exterior ao interior coincide com a passagem progressiva da norma observada por dever ou medo do juízo de Deus, ao amor fonte de energia vital e lei suprema de ação. Toda observância de normas morais exige empenho, mas fica circunscrita dentro seus limites, como é na natureza de toda lei. Pelo contrário, a lei do amor é mais exigente, pois todo amor autêntico não conhece limites no seu compromisso. Mas o compromisso que nasce do amor, nasce e se exprime na liberdade e se torna libertador. Nenhuma norma é suficiente para conter as potenciais exigências do amor livre e generoso. O amor prevê e antecipa as necessidades do outro, assim como o cuidar deste com carinho.
Na vigília da sua total e definitiva dedicação ao Pai e aos discípulos, Jesus resume a revelação de si mesmo e seu ensino na entrega do mandamento único e novo, o mandamento do amor, em continuidade da sua mesma experiência: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34).
Padres comprovados da vida espiritual, como São Bento, se colocam na linha do exemplo e do ensino de Jesus. Destacam a função pedagógica das normas de vida e a necessidade de passar sempre mais da prática disciplinar das regras, úteis para iniciar o caminho espiritual e nos sustentar nos momentos de fragilidade, para a lei do amor, fonte da verdadeira liberdade dos filhos e filhas de Deus. “O caminho da salvação – escreve São Bento – nunca se abre se não por penoso início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor corre-se pelo caminho dos mandamentos de Deus. De modo que não nos separando jamais do seu magistério e perseverando no mosteiro, em sua doutrina, até a morte, participemos, pela paciência, dos sofrimentos de Cristo, a fim de também merecermos ser co-herdeiros de seu reino” (Regra dos monges, Prólogo, 49-50).
A passagem através da pedagogia das normas até chegar à liberdade exigente do amor é um autêntico êxodo e saída de si mesmo, uma morte ao homem velho para dar lugar ao homem novo, uma passagem pascal em Cristo e com Cristo. Antes de tornar-se fruto do esforço moral, a vida do Espírito é fruto da graça pascal de Cristo, acolhida na experiência sacramental da liturgia e no caminho sincero da conversão do coração ao Senhor.
A meta do caminho espiritual, identificado por São Bento com “a subida da escada da humildade”, em sintonia com a humildade do Verbo que esvaziou a si mesmo, é alcançar a lei do amor gratuito, na liberdade e na alegria do Espírito.
“Tendo, por conseguinte, subido todos esses degraus da humildade, o monge atingirá logo, aquela caridade de Deus, que, quando perfeita, afasta o temor: por meio dela tudo o que observava antes, não sem medo, começará a realizar sem nenhum labor, como que naturalmente, pelo costume, não mais por temor do inferno, mas por amor de Cristo, pelo próprio bom costume e pela deleitação das virtudes” (Regra dos monges c. 7, 67-69).
Santo Agostinho, o homem que experimentou em si mesmo as radicais contradições entre os desejos mais profundos do coração humano e a incapacidade para segui-los com as própria forças, e que depois experimentou a explosiva energia renovadora da graça, chegará a cunhar a famosa frase que bem resume a raiz e o horizonte infinito do amor de Deus derramado no coração: “Ama e faz o que quiseres!”. Se alguém amar de verdade, não pode agir a não ser segundo a lógica do amor de Deus.
Esta é a verdadeira identidade cristã e o dinamismo da liberdade e responsabilidade do cristão, como filho e filha de Deus em Cristo.
Este é o caminho que Jesus abre novamente com seus gestos e palavras. Inevitavelmente muitas vezes elas vão embater com as atitudes míopes dos fariseus de todos os tempos. Na verdade o que Jesus põe novamente em primeiro lugar constitui o sentido do original projeto de Deus, revelado e doado a Israel na aliança e na Lei. Por isso nem os pormenores da Lei, assim entendida, deveriam ser arbitrariamente omitidos. Pois, também neles se manifesta a plenitude da lei. A lógica do amor é abrangente. Se os discípulos tem que estar dispostos a perder a vida por Jesus e pelo evangelho, para tornar-se dignos do reino de Deus ( Mt 10, 32-33), é também não menos verdade que “quem der, nem que seja um copo de água fria a um destes pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá sua recompensa” (Mt 10,42). No pequeno gesto está presente a plenitude do amor. Por isso toda vocação cristã tem em si mesma as potencialidades da santidade.
A lei de Deus não é constrangedora da dignidade da pessoa humana; é o contrário do que acontece nas mãos dos fariseus: por a terem manipulado e submetida às arbitrárias interpretações e tradições humanas, chegaram a ponto de até esvaziá-la e substituí-la com as próprias tradições.
Jesus indica a exigência que a relação dos discípulos com a lei, “a justiça” deles, seja “superior à dos fariseus e dos letrados”, prisioneiros do legalismo exterior (Mt 5, 20).
A partir da perspectiva da interioridade e da integridade do compromisso da pessoa na prática da vida cotidiana, destaca a lei suprema do amor como critério fundamental de vida na nova comunidade dos discípulos. Ao se colocar no patamar do projeto original de Deus, Jesus com sua autoridade soberana põe em luz as contradições e evidencia a exigência de descer às raízes de onde brotam os sentimentos e as ações. “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu porém, vos digo…”.
As três antíteses relativas ao preceito de não matar (v. 21 – 26), à proibição do adultério – divórcio (v. 27 – 32), e à proibição do juramento (v. 33 – 37), tocam as fundamentais relações com o próximo, consigo mesmo e com Deus. Jesus passa do aspecto exterior, mesmo aparentemente de pouca importância, como um olhar furtivo para uma mulher/homem, ou uma palavra desrespeitosa dirigida a um irmão, à raiz mais profunda dos pensamentos, dos desejos, da falsidade ou da integridade consigo mesmo e nas relações.
Até mesmo o ato de culto: quando aquele que oferece se encontra já diante do altar do Senhor, deve se submeter a verificar dos sentimentos do irmão em relação a si (Mt 5, 23-25). A relação com o irmão se torna critério fundamental da autenticidade da relação com o Senhor! A lei do amor não admite divisão e diferenciação ao relacionar-se com a vida. Como disse o próprio Jesus: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo 13,34). Se a pessoa está divida em si mesma, por desejos e atividades contrastantes com a exigência da integridade, é necessário enfrentar uma transformação radical desses elementos através de uma verdadeira morte e ressurreição pascal com Cristo (Mt 5, 29-30).
Junto com o evangelho encontramos na leitura semi-contínua da primeira carta de Paulo aos Coríntios (2a Leitura), palavras iluminadoras. Percebemos ainda mais claramente que o horizonte e o caminho proposto por Jesus pertencem ao mundo alternativo, outro: aquele da sabedoria da cruz e do mistério de Deus revelado em Jesus crucificado. Esta é a sabedoria que Paulo tem usado ao falar do evangelho de Jesus aos Coríntios, contando unicamente sobre a força persuasiva que vem do Espírito. Paulo recebeu de Deus esta surpreendente sabedoria divina através do Espírito, e ao próprio Espírito é preciso se submeter, para entrar no dinamismo da nova modalidade de viver.
Esta é a graça que a Igreja invoca como dom supremo do Pai para todo o povo que participa na celebração eucarística: “Ó Deus, que prometestes permanecer nos corações sinceros e retos, dai-nos, por vossa graça, viver de tal modo, que possais habitar em nós”.