Tag: didaque

A Didaqué: a instrução dos doze Apóstolos

“O Caminho da Vida e o caminho da morte”

Capítulo I

Existem dois caminhos: um da vida e outro da morte [Cf Jer 21,8; Dt 5,32s; 11,26-28; 30,15-20; Eclo 15,15-17]. A diferença entre ambos é grande.

O caminho da vida é, pois, o seguinte: primeiro amarás a Deus que te fez; depois a teu próximo como a ti mesmo [Cf Dt 6,5; 10,12s; Eclo 7,30; Lev 19,18; Mt 22,37;]. E tudo o que não queres que seja feito a ti, não o faças a outro [Cf Mt 7,12; Lc 6,31;].

Eis a doutrina relativa a estes mandamentos: Bendizei aqueles que vos amaldiçoam, orai por vossos inimigos, jejuai por aqueles que vos perseguem. Com efeito, que graça vós tereis, se amais os que vos amam? Não fazem os gentios o mesmo? Vós, porém, amai os que vos odeiam e não tenhais inimizade [Cf Mt 5,44s; Lc 6,27s; 6,32s].

Abstém-te dos prazeres carnais [Cf 1Ped 2,11]. Se alguém te bate na face direita, dá-lhe também a outra e tu serás perfeito. Se alguém te obrigar a mil (passos), anda dois mil com ele. Se alguém tomar teu manto, dá-lhe também tua túnica. Se alguém toma teus bens, não reclames, pois de todo o jeito não podes [Cf Mt 5,39ss; Lc 6,29].

Dá a todo aquele que te pedir, sem exigir devolução. Pois a Vontade do Pai é que se dê dos seus próprios dons. Bem-aventurado é aquele que dá conforme a lei, pois é irrepreensível. Ai daquele que toma (recebe)! Se, porém, alguém tiver necessidade de tomar (receber), é isento de culpa. Mas se não estiver em necessidade, terá que se responsabilizar pelo motivo e pelo fim por que recebeu. Colocado na prisão, ele não sairá de lá, até ter pago o último quadrante (centavo) [Mt 5,25s; Lc 12,58s].

Mas é verdade que a este propósito também foi dito: Que tua esmola sue em tuas mãos, até souberes a quem dar [Cf Eclo 12,1].

Capítulo II

O segundo mandamento da Instrução (dos Doze Apóstolos) é:

Não matarás, não cometerás adultério; não te entregarás à pederastia, não fornicarás, não furtarás, não exercerás magia nem bruxaria (charlatanice). Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida; não cobiçarás os bens do próximo.

Não serás perjuro [Cf Mt 5,33; Ex 20,7] nem darás falso testemunho; não falarás mal do outro nem lhe guardarás rancor.

Não usarás de ambiguidade nem no pensamento nem na palavra, pois a duplicidade é uma trama fatal [Cf Prov 21,6].

Tua palavra não seja falsa, nem vã; mas, ao contrário, seja cheia de sinceridade e seriedade (comprovada pela ação).

Não serás cobiçoso nem rapace, nem hipócrita, nem malicioso, nem soberbo. Não nutrirás má intenção contra teu próximo [Cf Ex 20,13-17; Dt 5,17-21].

Não odiarás ninguém, mas repreenderás uns e rezarás por outros, e ainda amarás aos outros mais que a ti mesmo (que tua alma).

Capítulo III

Meu filho, evita tudo o que é mau e semelhante ao mal.

Não sejas odiento ou rancoroso, pois o ódio conduz à morte; nem ciumento, nem brigão ou provocador, pois de tudo isso nascem os homicidas.

Meu filho, não sejas cobiçoso de mulheres, pois a cobiça conduz à fornicação. Evita a obscenidade e os maus olhares, pois de tudo isto nascem os adúlteros.

Meu filho, não te dês à adivinhação, pois ela conduz à idolatria. Abstém-te também da encantação (feitiçaria) e da astrologia e das purificações, nem procures ver ou ouvir (entender) estas coisas, pois tudo isto origina a idolatria.

Meu filho, não sejas mentiroso, pois a mentira conduz ao roubo; não sejas avarento ou cobiçoso de fama, pois tudo isto origina o roubo.

Meu filho, não sejas furioso, pois isto conduz à blasfêmia; não sejas insolente nem malvado, pois tudo isto origina as blasfêmias.

Sê, antes, manso, pois os mansos possuirão a Terra [Cf Mt 5,5; Sl 31,11].

Sê longânime (têm grandeza de ânimo), misericordioso, sem falsidade, tranquilo e bom, e guarda com toda a reverência a instrução ouvida.

Não te eleves a ti mesmo e não entregues teu coração à insolência; não vivas com os “grandes” (deste mundo), mas com os justos e humildes.

Tu aceitarás os acontecimentos da vida como sendo bons, sabendo que a Deus nada daquilo que acontece é estranho.

Capítulo IV

Meu filho, lembra-te dia e noite daquele que te anuncia a Palavra de Deus e o honrarás como ao Senhor, pois onde se proclama sua Soberania aí está o Senhor presente [Cf Hb 13,7].

Todos os dias procurarás a companhia dos santos, para encontrar apoio em suas palavras.

Não causarás cismas, mas reconciliarás os que lutam entre si. Julgarás de maneira justa, sem considerar a pessoa na correção das faltas [Cf Dt 1,16s; Pr 31,9].

Não te demorarás em procurar o que te há de acontecer (adivinhação do futuro) ou não.

Não terás as mãos sempre estendidas para receber, retirando-as quando se trata de dar.

Se possuíres algo, graças ao trabalho de tuas mãos, dá-o em reparação por teus pecados.

Não hesitarás em dar e, dando, não murmurarás, pois algum dia reconhecerás quem é o verdadeiro Dispensador da Recompensa.

Não repelirás o indigente, mas antes repartirás tudo com teu irmão, não considerando nada como teu, pois, se divides os bens da imortalidade, quanto mais o deves fazer com os corruptíveis [Cf At 4,32; Hb 13,16].

Não retirarás a mão de teu filho ou de tua filha, mas desde sua juventude os instruirás no temor a Deus.

Não darás ordens com rancor ao teu povo ou à tua serva, que esperam no mesmo Deus que tu, para que não percam o temor de Deus que está acima de todos. Com efeito, Ele não virá chamar segundo a aparência da pessoa, mas segundo a preparação do espírito.

Vós, servos, sede submissos aos vossos senhores como se eles fossem uma imagem de Deus, com respeito e reverência [Cf Ef 6,1-9; Col 3,20-25].

Detestarás toda a hipocrisia e tudo o que é desagradável ao Senhor.

Não violarás os mandamentos do Senhor e guardarás o que recebeste, sem acrescentar nem tirar algo.

Na assembleia, confessarás tuas faltas e não entrarás em oração de má consciência. – Este é o caminho da vida.

Capítulo V

O caminho da morte é o seguinte: em primeiro lugar, é mau e cheio de maldições: mortes, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatrias, práticas mágicas, bruxarias (necromancias), rapinagens, falsos testemunhos, hipocrisias, ambiguidades (falsidades), fraude, orgulho, maldade, arrogância, cobiça, má conversa, ciúme, insolência, extravagância, jactância, vaidade e ausência do temor de Deus;

Perseguidores dos bons, inimigos da verdade, amantes da mentira, ignorantes da recompensa da justiça, não-desejosos do bem nem do justo juízo, vigilantes, não pelo bem, mas pelo mal, estranhos à doçura e à paciência, amantes da vaidade, cobiçosos de retribuição, sem compaixão com os pobres, sem cuidado para com os necessitados, ignorantes de seu Criador, assassinos de crianças, destruidores da obra de Deus, desprezadores dos indigentes, opressores dos aflitos, defensores dos ricos, juízes iníquos dos pobres, pecadores sem fé nem lei. – Filho, fica longe de
tudo isso.

Capítulo VI

Vigia para que ninguém te afaste deste caminho da instrução, ensinando-te o que é estranho a Deus [Cf Mt 24,4].

Pois, se puderes portar todo o jugo do Senhor, serás perfeito; se não puderes, faze o que puderes.

Quanto aos alimentos, toma sobre ti o que puderes suportar, mas abstém-te completamente das carnes oferecidas aos ídolos, pois este é um culto aos deuses mortos.

“Celebração Litúrgica”

Capítulo VII

No que diz respeito ao batismo, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água corrente [Cf Mt 28,19].

Se não tens água corrente, batiza em outra água; se não puderes em água fria, faze-o em água quente.

Na falta de uma e outra, derrama três vezes água sobre a cabeça em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Mas, antes do batismo, o que batiza e o que é batizado, e se outros puderem, observem um jejum; ao que é batizado, deverás impor um jejum de um ou dois dias.

Capítulo VIII

Vossos jejuns não tenham lugar com os hipócritas; com efeito, eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana; vós, porém, jejuai na quarta-feira e na sexta (dia de preparação).

Também não rezeis como os hipócritas, mas como o Senhor mandou no seu Evangelho: Nosso Pai no Céu, que Vosso Nome seja santificado, que Vosso Reino venha, que Vossa vontade seja feita na Terra, assim como no Céu; dá-nos hoje o pão necessário (cotidiano), perdoa a nossa ofensa assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal [Cf Mt 6,9-13; Lc 11,2-4], pois Vosso é o Poder e a Glória pelos séculos.

Assim rezai três vezes por dia.

Capítulo IX

No que concerne à Eucaristia, celebrai-a da seguinte maneira:

Primeiro sobre o Cálice, dizendo: Nós vos bendizemos (agradecemos), nosso Pai,
pela santa vinha de Davi, vosso servo, que vós nos revelastes por Jesus, vosso Servo; a Vós, a
Glória pelos séculos! Amém.

Sobre o Pão a ser quebrado: Nós vos bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela
Vida e pelo Conhecimento que nos revelastes por Jesus, vosso Servo; a Vós, a Glória pelos
séculos! Amém.

Da mesma maneira como este Pão quebrado primeiro fora semeado sobre as colinas e depois recolhido para tornar-se um, assim das extremidades da Terra seja unida a Vós vossa Igreja em vosso Reino; pois vossa é a Glória e o Poder pelos séculos! Amém.

Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em Nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: “Não deis as coisas santas aos cães!”.

Capítulo X

– Mas depois de saciados, bendizei (agradecei) da seguinte maneira:

Nós vos bendizemos (agradecemos), Pai Santo, por vosso Santo Nome, que fizestes habitar em nossos corações, e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade que nos revelastes por Jesus, vosso Servo; a Vós, a Glória pelos séculos. Amém.

Vós, Senhor Todo-poderoso, criastes todas as coisas para a Glória de Vosso nome e, para o gozo deste alimento e a bebida aos filhos dos homens, a fim de que eles vos bendigam; mas a nós deste uma Comida e uma Bebida espirituais para a vida eterna por Jesus, vosso Servo.

Por tudo vos agradecemos, pois sois poderoso; a Vós, a Glória pelos séculos. Amém.

Lembrai-vos, Senhor, de vossa Igreja, para livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la no vosso Amor; reuni esta Igreja santificada dos quatro ventos no vosso Reino que lhe preparaste, pois vosso é o Poder e a Glória pelos séculos. Amém.

Venha vossa Graça e passe este mundo! Amém. Hosana à Casa de Davi [Cf Mt 21,15]. Venha aquele que é santo! Aquele que não é (santo) faça penitência: Maranatá! [Cf 1Cor 16,22; Ap 22,20] Amém.

Deixai os profetas bendizer à vontade.

A Vida em comunidade

Capítulo XI

Se, portanto, alguém chegar a vós com instruções conformes com tudo aquilo que acima é dito, recebei-o.

Mas, se aquele que ensina é perverso e expõe outras doutrinas para demolir, não lhe deis atenção; se, porém, ensina para aumentar a justiça e o conhecimento do Senhor, recebei-o como o Senhor.

A respeito dos Apóstolos e profetas, fazei conforme os dogmas do Evangelho.

Todo o Apóstolo que vem a vós seja recebido como o Senhor.

Mas ele não deverá ficar mais que um dia, ou, se necessário, mais outro. Se ele, porém, permanecer três dias, é um falso profeta.

Na sua partida, o Apóstolo não leve nada, a não ser o pão necessário até a seguinte estação; se, porém, pedir dinheiro, é falso profeta.

E não coloqueis à prova nem julgueis um profeta em tudo que fala sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas este pecado não será perdoado [Cf Mt 12,31].

Nem todo aquele que fala no espírito é profeta, a não ser aquele que vive como o Senhor. Na conduta de vida conhecereis, pois, o falso e o verdadeiro profeta.

E todo profeta que manda, sob inspiração, preparar a mesa não deve comer dela; ao contrário, é um falso profeta.

Todo profeta que ensina a verdade sem praticá-la é falso profeta.

Mas todo profeta provado (e reconhecido) como verdadeiro, representando o Mistério cósmico da Igreja, não ensinando, porém, a fazer como ele faz, não seja julgado por vós, pois ele será julgado por Deus. Assim também fizeram os antigos profetas.

O que disser, (supostamente) sob inspiração: “Dá-me dinheiro”, ou qualquer outra coisa, não o escuteis; se, porém, pedir para outros necessitados, então ninguém o julgue.

Capítulo XII

Todo aquele que vem a vós, em nome do Senhor, seja acolhido. Depois de o haverdes sondado, sabereis discernir a esquerda da direita (pois tendes juízo).

Se o hóspede for transeunte, ajudai-o quanto possível. Não permaneça convosco senão dois ou, se for necessário, três dias.

Se quiser estabelecer-se convosco, tendo uma profissão, então trabalhe para o seu sustento.

Mas, se ele não tiver profissão, procedei conforme vosso juízo, de modo a não deixar nenhum cristão ocioso entre vós.

Se não quiser conformar-se com isto, é alguém que quer fazer negócios com o cristianismo. Acautelai-vos contra tal gente.

Capítulo XIII

Todo verdadeiro profeta que quer estabelecer-se entre vós é digno de seu alimento.

Do mesmo modo, também o verdadeiro mestre, como o operário, é digno de seu alimento.

Por isso, tomarás as primícias de todos os produtos da vindima e da eira, dos bois e das ovelhas e darás aos profetas, pois estes são os vossos grandes sacerdotes.

Se vós, porém, não tiverdes profeta, dai-o aos pobres.

Se tu fizeres pão, toma as primícias e dá-as conforme manda a lei.

Do mesmo modo, abrindo uma bilha de vinho ou de óleo, toma as primícias e dá-as aos profetas.

E toma as primícias do dinheiro, das vestes e de todas as posses e, segundo o teu juízo, dá-as conforme a lei.

Capítulo XIV

Reuni-vos no dia do Senhor (Domingo) para a Fração do Pão e agradecei (celebrai a Eucaristia), depois de haverdes confessado vossos pecados, para que vosso sacrifício seja puro.

Mas todo aquele que vive em discórdia com o outro, não se junte a vós antes de se ter se reconciliado, a fim de que vosso Sacrifício não seja profanado [Cf Mt 5,23-25].

Com efeito, deste Sacrifício disse o Senhor: “Em todo o lugar e em todo o tempo se me oferece um Sacrifício puro, porque sou o Grande Rei – diz o Senhor – e o meu Nome é admirável entre todos os povos” [Cf Mal 1,11-14].

Capítulo XV

Escolhei-vos, pois, bispos e diáconos dignos do Senhor, homens dóceis, desprendidos (altruístas), verazes e firmes, pois eles também exercerão entre vós a Liturgia dos profetas e doutores (mestres).

Não os desprezeis, porque eles são da mesma dignidade entre vós como os profetas e doutores.

Repreendei-vos mutuamente uns aos outros, não com ódio, mas na paz, como tendes no Evangelho. E ninguém fale com aquele que ofendeu o outro (próximo), nem o escute até que ele se tenha arrependido.

Fazei vossas preces, esmolas e todas as vossas ações como vós tendes no Evangelho de Nosso Senhor.

O Fim dos tempos

Capítulo XVI

Vigiai sobre vossa vida. Não deixeis apagar vossas lâmpadas nem solteis o cinto de vossos rins, mas estai preparados, pois não sabeis a hora na qual Nosso Senhor vem [Cf Mt 24,41-44; 25,13; Lc 13,35].

Reuni-vos frequentemente para procurar a salvação de vossas almas, pois todo o tempo de vossa fé não vos servirá de nada se no último momento não vos tiverdes tornado perfeitos.

Com efeito, nos últimos dias se multiplicarão os falsos profetas e os corruptores; as ovelhas se transformarão em lobos e o amor em ódio [Cf Mt 24,10-13; 7,15].

Com o aumento da iniquidade, os homens se odiarão, se perseguirão e se trairão mutuamente, e então aparecerá o sedutor do mundo como se fosse o filho de Deus. Ele fará milagres e prodígios e a Terra será entregue em suas mãos e ele cometerá crimes tais como jamais se viu desde o começo do mundo [Cf Mt 24,24; 2Tes 2,4-9].

Então toda criatura humana passará pela prova de fogo e muitos se escandalizarão e perecerão. Mas aqueles que permanecerem firmes na sua fé serão salvos por Aquele que os outros amaldiçoam [Cf Mt 24,10-13].

Aparecerão os sinais da verdade: primeiro o sinal da abertura no céu, depois o sinal do som da trombeta e, em terceiro lugar, a ressurreição dos mortos [Cf Mt 24,31; 1Cor 15-52; 1Ts 4,16].

Mas não de todos, segundo a Palavra da Escritura: O Senhor virá e todos os santos com Ele.

Então verá o mundo a vinda do Senhor sobre as nuvens do céu [Cf Mt 24,30; 26,64].

_____
Fonte:

• ALTANER, Berthold & STUIBER, Alfred. Patrologia, São Paulo: Paulinas, 1972, pp. 89/91
• DIDAQUÉ, O Catecismo Dos Primeiros Cristãos Para As Comunidade De Hoje. São Paulo: Paulus, 1997.

Catolicismo Primitivo – 1. A Didaqué

Autor: José Miguel Arráiz, o 20.06.15 às 9:57 PM
Fonte: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php
Trad.: Carlos Martins Nabeto 

“Didaqué” é uma palavra grega que significa “ensinamento”. Daí que o título completo da obra seja “A instrução do Senhor aos gentios através dos Doze Apóstolos” ou, de uma forma mais resumida, “Instruções dos Apóstolos”. É considerada como um dos documentos mais importantes da Igreja primitiva, pertencente ao grupo de escritos dos Padres Apostólicos[1]. Ainda que a data da sua composição não seja conhecida com exatidão, alguns autores opinam que foi escrita, aproximadamente, entre os anos 50 a 70, enquanto que outros a situam entre inícios e meados do século II.

O Batismo

Na Didaqué se encontra informação de valioso interesse apologético, porque são descritas as práticas católicas de batizar, tanto por imersão[2] quanto por infusão[3]:

– “Sobre o batismo, batiza desta maneira: ditas com anterioridade todas estas coisas, batiza em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água viva [corrente]. Se não tens água viva, batiza com outra água; se não podes fazê-lo com água fria, faz com quente. Se não tiveres uma nem outra, derrama água na cabeça três vezes, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, jejuem o batizante e o batizando, e alguns outros que o possam. Ao batizando, contudo, lhe mandarás jejuar um ou dois dias antes” (Didaqué 7,1-4).

Isto é relevante porque algumas denominações protestantes têm entendido que só é válido o batismo por imersão. Argumentam que a palavra “batismo” é uma romanização (“bapto” ou “baptizo”), cujo significado é “lavar” ou “submergir”, implicando que a forma de batizar deve ser dessa maneira. É por isso que se costuma aplicar o batismo por imersão em comunidades eclesiais protestantes, como as batistas e evangélicas, além de algumas seitas como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias [mórmons] e os Testemunhas de Jeová. No entanto, o texto da Didaqué demonstra que para os primeiros cristãos o significado da palavra não estabelecia uma maneira fixa para a administração do sacramento, e que este poderia variar de acordo com as circunstâncias[4].

O texto da Didaqué também lança muita luz sobre a antiga polêmica relacionada à fórmula batismal, sobre se na Igreja primitiva se batizava somente em nome de Jesus, como menciona Atos 2,38; 8,16; 10,48; 19,5, ou em nome da Trindade, como Jesus ordena em Mateus 28,19. Isto, porque a Didaqué também faz referência ao batismo “em nome do Senhor” (Didaqué 9), porém, quando indica as palavras a serem empregadas no momento de batizar, diz que deve-se fazer “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”:

– “Que ninguém coma nem beba de vossa ação de graças, senão os batizados em nome do Senhor…” (Didaqué 9).

– “…batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Didaqué 7).

Isto apoia a tese de que, efetivamente, quando na Escritura se faz referência ao batismo “em nome de Jesus”, o que se fazia era uma referência de forma abreviada ao batismo “em nome da Trindade”, diferenciando-o assim de outros batismos como o de João Batista. [Ademais, a presença da fórmula na Didaqué] também descarta a tese de que a fórmula trinitária foi uma interpolação tardia, originada no século IV, tal como supõem algumas seitas que rejeitam a doutrina da Trindade[5].

A forma de orar

No que diz respeito à forma de orar, a Didaqué apresenta instruções muito interessantes de ordem apologética em face às críticas do Protestantismo em relação às “orações pré-fabricadas” católicas. Isto porque ainda que o Protestantismo enxergue tradicionalmente neste tipo de oração uma forma de “oração vã”, [a Didaqué] precisamente ensina aqui a recitar o “Pai Nosso” – certamente uma “oração pré-fabricada” – em contraposição à oração dos hipócritas[6]:

– “Tampouco oreis à maneira dos hipócritas; ao contrário, tal como o Senhor ordenou em seu Evangelho, assim orareis: ‘Pai nosso celeste, santificado seja teu nome, venha teu reino, faça-se tua vontade assim no céu como na terra. O pão nosso de nossa subsistência dai-nos hoje e perdoa-nos nossa dívida, assim como também perdoamos a nossos devedores, e não nos leves à tentação, mas livra-nos do mal. Porque teu é o poder e a glória pelos séculos’. Assim orareis três vezes ao dia” (Didaqué 8,2-3).

A celebração da Eucaristia

Ainda que na Didaqué não encontremos um testemunho explícito a favor da presença real de Cristo na Eucaristia – doutrina católica rejeitada quase que unanimemente pelo Protestantismo – encontramos, porém, um texto que a insinua implicitamente, ao exigir que só possam se aproximar dela os batizados, por ser um alimento sagrado:

– “No tocante à ação de graças, dareis graças desta maneira. Primeiramente, sobre o cálice: ‘Te damos graças, Pai nosso, pela santa vinha de Davi, teu servo, que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu servo. A ti seja a glória pelos séculos’. Depois, sobre o fragmento: ‘Te damos graças, Pai nosso, pela vida e o conhecimento que nos manifestaste por meio de Jesus, teu servo. A ti seja a glória pelos séculos. Como este fragmento estava disperso sobre os montes e, reunido, se fez um, assim seja reunida tua Igreja dos confins da terra em teu Reino. Porque tua é a glória e o poder, por Jesus Cristo, eternamente’. Que ninguém, contudo, coma nem beba da vossa ação de graças senão os batizados no nome do Senhor, pois acerca disso disse o Senhor: ‘Não deis o sagrado aos cães’” (Didaqué 9,1-4).

Muitas denominações cristãs não-católicas, seguindo a Reforma Protestante, têm rejeitado também o caráter sacrificial da Eucaristia, ao ler em Hebreus 9,28 que “Cristo foi oferecido em sacrifício uma só vez, para quitar os pecados de muitos”; por isso, para eles a Missa católica é uma abominação[7]. Na Didaqué, pelo contrário, vemos que os primeiros cristãos enxergavam a Eucaristia como o sacrifício puro e perfeito profetizado pelo profeta Malaquias: “Pois desde o nascer do sol até o poente, grande é meu nome entre as nações e em todo lugar se oferece a meu nome um sacrifício de incenso e uma oblação pura” (Malaquias 1,11).

– “Reunidos a cada dia do Senhor, fracionai o pão e dai graças, …porque este é o sacrifício de que disse o Senhor: ‘Em todo lugar e a todo tempo se me oferece um sacrifício puro, porque eu sou Rei grande – diz o Senhor – e meu nome é admirável entre as nações” (Didaqué 14,1-3).

Cabe ressaltar que a doutrina católica não ensina que Cristo se “ressacrifica” a cada Missa, como assumem muitos protestantes de forma equivocada. O que [a Igreja] ensina é que o único sacrifício de Cristo é apresentado a Deus Pai em cada Eucaristia e, por isso, no Catecismo oficial da Igreja Católica se ensina que “atualiza o único sacrifício de Cristo Salvador” (CIC 1330) e não que “o repete”.

Confissão dos pecados

Em contraposição à prática comum do Protestantismo, onde a pessoa se confessa diretamente com Deus, na Didaqué encontramos um testemunho inicial da disciplina penitencial da Igreja primitiva, que no princípio implicava uma confissão pública dos pecados diante dos presbíteros e da comunidade, tal como se menciona na Sagrada Escritura (Atos 19,18; Tiago 5,16) e cuja forma se desenvolveu paulatinamente até a confissão auricular que conhecemos hoje em dia[8]:

– “Reunidos a cada dia do Senhor, fracionai o pão e dai graças, depois de haver confessado vossos pecados, a fim de que o vosso sacrifício seja puro” (Didaqué 14,1).

A esmola

Encontra-se também uma breve menção à esmola como obra piedosa ordenada pelo Evangelho.

– “No tocante às vossas orações, esmolas e todas as demais ações, as fareis conforme o tens ordenado no Evangelho de Nosso Senhor” (Didaqué 15,4).

Agora, esta esmola se referiria também à contribuição voluntária dos fiéis para o sustento da Igreja e a ajuda dos mais necessitados, mencionada em Romanos 15,26-28; 1Coríntios 16,1; 2Coríntios 8,10? Ainda que o texto não o indique, isto é bastante provável. O que parece ser seguro, também, é a ausência total da prática do dízimo, tal como foi adotada pelo Protestantismo e que é derivada da Lei Mosaica prescrita no Antigo Testamento. A norma cristã refletida na Didaqué é, pelo contrário, a própria norma evangélica onde cada fiel deve contribuir não com exatos 10%, mas “segundo o ditame do seu coração; não de má vontade nem forçado, pois: ‘Deus ama a quem dá com alegria’” (2Coríntios 9,7).

A segunda vinda de Cristo

Conforme se observa na Didaqué, os cristãos da Igreja primitiva pensavam que não era possível prever o momento da segunda vinda de Cristo, tentação esta em que têm caído uma e outra vez numerosas seitas (Adventistas, Testemunhas de Jeová, Crescendo em Graça, etc.). Ao contrário, para os primeiros cristãos, era preciso estar preparado porque ao não saberem nem o dia e nem a hora, o mais prudente era evitar que fossem pegos desprevenidos:

– “Vigiai sobre vossa vida; não se apaguem vossas lanternas, nem descarregai vossos lombos, mas estai preparados, porque não sabeis a hora em que  vosso Senhor virá” (Didaqué 16,1-2).

Justificação e Salvação

Quanto à doutrina da justificação, a Didaqué, embora um texto cristão tão breve e antigo, contribui ricamente nesta doutrina. Rejeita, por um lado, e com antecipação, o Pelagianismo, heresia que surgiu formalmente no século V, onde o homem se justifica por seus próprios méritos e não pela graça de Deus mediante a fé:

– “Logo, tampoco nós, que fomos por Sua vontade chamados em Jesus Cristo, nos justificamos por nossos próprios méritos, nem por nossa sabedoria, inteligência e piedade, ou pelas obras que fazemos em santidade de coração, mas pela fé, pela qual o Deus onipotente justificou a todos desde o princípio” (Didaqué 32,4).

Porém, ao mesmo tempo, rejeita antecipadamente a heresia adotada por Lutero e o Protestantismo, onde só a fé basta para salvar-se (“Sola Fides”) mesmo que não esteja acompanhada da obediência aos mandamentos e uma vida conforme à vontade de Deus. Rejeita, ainda, a ideia de que a salvação não pode ser perdida (doutrina protestante que afirma: “uma vez salvo, sempre salvo”), assinalando que de nada serve ter tido fé durante muito tempo se a morte não surpreender o fiel na graça de Deus[9]:

– “Reuni-vos com frequencia, inquirindo o que convém a vossas almas. Porque de nada vos servirá todo o tempo de vossa fé se não estiverdes perfeitos no último momento” (Didaqué 16,2-3).

Você pode ler uma tradução católica (em espanhol) da Didaqué nesta url:

– A Didaqué – http://mercaba.org

Também pode ler a tradução protestante (em espanhol) nesta outra:

– A Didaqué – http://escrituras.tripod.com

—–
NOTAS:
[1] São conhecidos como Padres Apostólicos aqueles autores do Cristianismo primitivo que tiveram algum contato com um ou mais Apóstolos. São um subconjunto dentro dos Padres da Igreja, que se compõe de escritores do primeiro século e inícios do segundo, cujos escritos têm uma profunda importância para o conhecimento da Fé Cristã primitiva. Caracterizam-se por ser textos descritivos ou normativos, que tratam de explicar a natureza da novidade da doutrina cristã.
[2] O batismo por imersão realiza-se mergulhando totalmente a batizando na água.
[3] O batismo por infusão realiza-se derramando água sobre a cabeça [do batizando].
[4] Da mesma maneira que a Sagrada Escritura observa que a forma de batizar nem sempre pode ser por imersão. A este respeito pode-se mencionar o fato de que São Paulo parece ter sido batizado em uma casa e de pé. Atos 22,16 narra um batismo em Jerusalém, de 3000 pessoas em um mesmo dia e, visto que se trata de uma cidade que não possui nenhum rio, faz-se difícil crer que essa quantidade de pessoas foi mergulhada em algum tanque ou poço de água potável.
[5] Os que argumentam que a fórmula batismal em nome das Três Divinas Pessoas, mencionada em Mateus 28,19, é uma interpolação tardia, buscam apoio nos escritos de Eusébio de Cesareia, historiador da Igreja do século IV, fazendo observar que antes do Concílio de Niceia (ano 325) Eusébio citava Mateus 28,19 escrevendo: “Fazei discípulos a todas as gentes, bautizando-os em meu nome”, e só posteriormente começou a citar o texto como o conhecemos hoje. Isto, no entanto, mais que provar que na Antiguidade se constumava citar a Escritura de forma não-textual, não tem força em relação à evidência documental, já que na totalidade de manuscritos bíblicos existentes (incluindo os mais antigos) lê-se a fórmula completa: “…batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (quanto a isto, leia: “Batismo só em nome de Jesus?”).
[6] No Catolicismo não se crê que uma oração seja vã por ser “pré-fabricada”. Crê-se que quando Jesus adverte que ao orar não se deve “falar muito como os gentios, que se caracterizam por crerem que pelo palavrório serão ouvidos” (Mateus 6,7) não está criticando a repetição em si mesma, já que o próprio Jesus chegou a empregar repetições (Mateus 26,43-44) e as encontramos frequentemente em orações da Sagrada Escritura (Isaías 6,2-3; Daniel 3,52-57; Salmo 136; 150; Apocalipse 4,8; etc.); nem está criticando a oração longa, da qual o próprio Senhor deu exemplo no Getsemani (Mateus 26,39.42.44), permanecendo a noite inteira em oração. Crê-se, ao contrário, que a crítica se refira à forma de orar dos pagãos, que enxergavam a oração como uma espécie de fórmula mágica que, sendo repetida mecânicamente, alcançavam seus objetivos; era o que faziam, por exemplo, os sacerdotes de Baal no Antigo Testamento, com práticas intermináveis na oração (1Reis 18,26) (quanto a isto, consulte o meu livro “Conversas com meus Amigos Evangélicos”, Createspace, 2014, 1ª Edição, p. 170).
[7] Por otro lado, se se lê a Epístola aos Hebreus no seu contexto (capítulos 9 e 10), observa-se que o seu propósito não era rejeitar o caráter sacrificial da Eucaristia, mas admoestar aqueles cristãos, que estranhavam os sacrifícios rituais da Antiga Aliança, a não cair neles e judaizar. O cristão não tem necessidade dos ditos sacrificios, que não eram mais que uma prefiguração do sacrifício Eucarístico.
[8] Ainda que a confissão auricular pôde desenvolver-se em sua forma exterior através do tempo, sua essência, que reside no fato reconhecido da reconciliação do pecador por meio da autoridade da Igreja, se depreende do poder que Cristo outorgou a seus Apóstolos quando lhes disse: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, eles lhes serão retidos” (João 20,23).
[9] Para mais detalhes a respeito da doutrina católica sobre a justificação, consulte os meus livros “Conversas com meus Amigos Evangélicos”, Createspace, 2014, 1ª Edição, p. 52s) e “Compêndio de Apologética Católica”, Creatspace, 2014, 2ª Edição, p. 205.

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén