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Deus castiga? (Parte 1: O paradoxo de Epicuro)

Autor: José Miguel Arráiz
Fonte: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php
Trad.: Carlos Martins Nabeto

Como “promessa é dívida”[1], inicio aqui uma nova série de artigos, em que analiso a nova edição do livro “Deus não castiga”, de Alejandro Bermúdez Rosell, que está à venda na Amazon. Neste artigo começarei analisando uma das principais objeções: a de que, segundo suas próprias palavras, nunca recebeu resposta. Eis o que ele diz:

– “Nunca recebemos uma resposta direta às imensas objeções que apresentamos, filosófica e teologicamente, se se afirma que, com efeito, Deus castiga… A filosofia levanta o desafio que tradicionalmente é conhecido como ‘paradoxo de Epicuro’. O desafio atribuído ao filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.) é este:

‘Ou Deus quer evitar o mal e não pode;
ou Deus pode e não quer;
ou Deus não quer e não pode;
ou Deus pode e quer’

Portanto, se o mal existe, ou Deus é perverso, ou Deus não existe.

Ao longo de 2014, aqueles que afirmam que ‘Deus castiga’ foram incapazes de explicar a resposta filosófica que o Catolicismo possui diante deste paradoxo e se limitaram a repetir citações do Magistério e da Escritura…

Aqueles que vêm insistindo [na tese] de que Deus castiga jamais responderam como sua proposta teológica – que creem confirmada pelo mero apelo a citações – é compatível com a resposta filosófica católica. No máximo, um dos ‘castigadores’ se limitou a apontar no Twitter que coisa NÃO significa que Deus castiga… e sem explicar que coisa, sim, significa que assim seja!”

Não é verdade que não lhe foi dada uma resposta. Antes de começar, é necessário esclarecer – em honra à verdade – que a afirmação de que não lhe foi dada uma resposta para essa questão não é verdadeira. Quero recordar a Alejandro que a essa exata objeção dediquei um artigo completo intitulado:

– “Resposta a Alejandro Bermúdez: O castigo é um mal que Deus pretende em ordem a um bem maior”[2]

E não só eu, como também Nestor Martinez, professor de filosofia católica e meu companheiro aqui em Infocatólica, o fez em:

– “A razão teológica e o castigo divino”[3]

Outra grave falta à verdade verifico quando ele sustenta que “no máximo, um dos ‘castigadores’ se limitou a apontar no Twitter que coisa NÃO significa que Deus castiga… e sem explicar que coisa, sim, significa que assim seja!”. Isto também é falso, visto que eu dediquei a primeira intervenção[4] para explicar o que se deve entender quando é dito que Deus castiga.

Não acho bom, tampoco, que ele se refira ambiguamente ao Fr. Nelson Medina como “um dos ‘castigadores’”, perseverando na atitude de esconder dos seus leitores a identidade e os argumentos dos seus oponentes. Frei Nelson Medina é um conhecido teólogo e pregador internacional, que contribuiu para o debate, primeiro no Twitter e depois no seu blog[5]. Em tal intervenção, Fr. Nelson não pretendia tornar a repetir o que já havíamos dito, mas ajudar a esclarecer como NÃO SE DEVE entender o castigo divino, de modo a não transmitir uma imagem distorcida de Deus. O mesmo fez Mons. José Ignacio Munilla, bispo de San Sebastián, quando participou do debate e afirmou que era um erro negar que Deus castigava; porém, disse que era necessário entender isto corretamente[6].

O problema filosófico de Epicuro

Uma vez esclarecido o anterior, podemos mergulhar de cabeça na análise do problema filosófico de Epicuro e se ele realmente representa uma objeção quanto ao tema do castigo divino. Porém, antes é oportuno repassar brevemente alguns conceitos básicos de Teologia, como o são o significado de castigo, pena, mal, etc.

– O castigo é simplesmente a pena que se impõe a quem cometeu um delito ou falta.

– A pena é a privação de um bem, que uma criatura racional sofre involuntariamente por uma culpa própria. A pena é, portanto, um mal (“malum poenae”) derivado de otro mal (“malum culpae”).

– O mal não é outra coisa senão a ausência de bem.

O problema filosófico de Epicuro levanta [a hipótese de] que se Deus existisse, não poderia existir o mal, salvo se Deus não fosse bom ou não fosse onipotente. Alejandro parte daqui e recorre a um sofisma que faz ver que, como o castigo é um mal, Deus não pode nunca querer castigar.

Por trás deste raciocínio, existem dois erros; é importante revelá-los:

1) Não distingue entre o mal físico e o mal moral; e entre ser a causa direta e indireta.

Alejandro insiste que Deus não castiga porque não pode ser causa direta do mal. Pois bem: não está em discussão que possa sê-lo, porque como já dissemos, o mal não tem causa direta, por ser a ausência de bem. Dizer o contrário seria cair em Maniqueísmo. Eu mesmo afirmei que Deus não pode ser causa direta do mal em meu livro “Deus Castiga”, na página 43.

O que ocorre é que, por Deus não ser causa direta do mal, não se deduz que não castigue. Tampouco se deduz que não possa pretendê-lo, querê-lo ou ser sua causa indireta.

“Espere um instante! Você quer dizer que Deus pode ser causa indireta do mal? Você quer dizer que Deus pode pretender o mal ou querê-lo?” – É neste ponto que devemos nos deter e pensar com calma, para não confundir.

Em primeiro lugar, devemos distinguir entre o “mal físico” (a doença, o sofrimento, etc.) e o “mal moral” (o pecado). Quanto ao “mal moral”, Deus não o pretende nem o quer, nem como meio nem como fim; isto porque, além de repugnar à santidade infinita de Deus, envolve ainda a subversão da ordem necessária que toda criatura inteligente e livre diz acerca de Deus como último fim. Contudo, isto não impede que Deus permita sua existência; isto porque essa permissão não envolve uma aprovação do mesmo, e de outro lado, Deus não tem nenhuma obrigação de impedir sua existência.

Porém, quanto ao “mal físico”, Deus pode, sim, pretendê-lo como um meio para obter um fim superior: pode querer uma doença para obter uma conversão; ou um sofrimento específico para purificar-nos.

Portanto, negar que Deus possa, em determinada circunstância, pretender o mal físico como meio para obter um bem maior não implica somente negar que Deus castigue, como também negar que possamos ser purificados através dos sofrimentos. Ainda que o sofrimento e o castigo sejam conceitos distintos e nem sempre necessariamente relacionados (já que nem todo sofredor sofre porque está em pecado), sabemos que ambos são ordenados pela Providência Divina para obter um bem maior. No Evangelho vemos uma infinidade de exemplos, desde o caso do cego de nascença (que o próprio Jesus afirma que assim nasceu para que se manifestasse a glória de Deus) até o caso do emudecimento temporário de Zacarias (assim castigado e então purificado de sua incredulidade).

Quanto a isto, sugiro a leitura integral da explicação do Cardeal Zeferino González, em sua obra “Filosofia Elementar”[7], que coloquei ao final, nas Notas. Você também encontrará aí uma explicação completa de São Tomás de Aquino[8].

2) Reduz a pena a um mero mal

Eis aqui otro erro de Alejandro porque, como explica São Tomás, é errôneo ignorar que a pena contém dois elementos, isto é, a “razão de mal” (já que é a privação de algum bem) e a “razão de bem” (já que tanto é justa quanto ordenada). Segundo São Tomás, este erro foi cometido também por alguns filósofos pagãos, como Cicero; daí deduziram que o castigo não provinha de Deus.

A seguir, compartilho a explicação de São Tomás que, apesar de ter sido escrita há muito tempo, mostra que a objeção não mudou em absolutamente nada; até parece que enxergamos o próprio São Tomás participando do debate atual:

– “Se a pena ou castigo procede de Deus – Primeiramente, se procede assim: parece que a pena não procede de Deus, porque todo mal é inverso a algum bem. Porém, a pena é um mal, eis que provoca dano; portanto, é contrária a um bem. Entretanto, o que é contrário a um bem não pode proceder do Sumo Bem, porque o Sumo Bem não seria autor da paz, mas da luta e da dissensão, se Dele procedessem coisas contrárias. Logo, o castigo não procede de Deus. / Ademais, tudo o que está além da intenção do agente, deve-se a algum defeito. Porém, todo mal está além da intenção do agente, como diz Dionísio: ‘Porque ninguém age em vista do mal’. Logo, todo mal deve-se a algum defeito. Contudo, nada do que se deve a um defeito tem Deus como sua causa, como foi mostrado. Logo, não procede de Deus. / Ademais, o que não é causa da ação, não é causa daquilo que é causado pela ação, como foi dito. Porém, existem muitas penas que se infligem a alguns pelos pecados de outros, pois muitos são castigados com aflições por aqueles que injustamente os oprimem. Logo, como Deus não é causa da culpa, parece que tampouco seja causa de qualquer pena. / Ademais, tudo que procede de Deus tende ao bem. Mas algumas penas se inclinam ao mal, como a fome e outras coisas semelhantes. Logo, nem toda pena procede de Deus. / Ademais, para aquilo cuja geração é boa, sua corrupção é má. Porém, a geração da graça é boa, porque procede de Deus. Assim, a corrupção da graça é má. Entretanto, a corrupção da graça é uma pena ou castigo. Logo, nem toda pena procede de Deus, pois Deus é causa apenas dos bens.

Por outro lado, contrário a isto, tudo o que é justo, é bom; e tudo o que é bom, procede de Deus. Porém, toda pena é justa, como provou Agostinho na distinção anterior. Logo, toda pena ou castigo procede de Deus. / Ademais, a quem pertence a remuneração, pertence também a condenação, isto é, àquele a quem corresponde julgar os atos bons e maus. Ora, premiar as boas obras é próprio de Deus; logo, também é próprio Dele infligir as penas.

Respondo:

Deve-se dizer que a pena contém duas coisas, isto é: a “razão de mal”, já que é a privação de algum bem; e a “razão de bem”, já que é justa e ordenada. Portanto, alguns antigos, que consideravam somente a pena, já que é um defeito e um mal, disseram que as penas não procediam de Deus; nesse erro incorreu também Cicero, como vemos por sua obra ‘De Officiis’. Estes homens negaram, portanto, a Providência de Deus sobre os atos humanos, pelo qual a ordem que a pena tem em relação à culpa não diziam que se devesse à Providência Divina, mas à justiça dos homens que infligiam a pena; e que o defeito que há na pena não era ordenado por Deus, mas que ocorria pela necessidade das causas segundas, pois afirmavam que Deus dava o ser às coisas como o faz um agente movido por necessidade natural, de modo tal que de uma primeira origem, que não tem nenhum defeito, procederia um primeiro originado distante de sua perfeição; e diziam, segundo, que maior era a distância em relação a um primeiro, pela ordem das causas e dos efeitos, quanto mais defeituosa tal coisa fosse. / Esta tese é errônea, como se mostrou no l.1,d.39, onde se diz que a Providência Divina se estende a tudo. E, portanto, há que se dizer que os castigos procedem de Deus, embora a culpa não proceda de Deus, por mais que ambas as coisas sejam más. / A razão disso é que a cada coisa se lhe atribui uma causa eficiente, segundo o modo em que essa coisa procede de dita causa. Porém, a culpa tem razão de mal e de defeito, segundo proceda de sua causa eficiente, que não ordena sua ação ao fim devido; e, assim, à culpa não se lhe pode atribuir uma causa que não possa cair em algum defeito. A pena, ao contrário, não tem razão de mal nem de defeito, segundo procede de sua causa eficiente, porque esta inflige o castigo por uma ação ordenada, mas que tem razão de defeito e de mal somente no que recebe a ação, o qual é privado de algum bem por uma justa ação. / E, assim, Deus é autor da pena, mas de modo diverso, segundo a diversidade das penas. Porque há uma pena de dano, como a subtração da graça e coisas semelhantes, e destas penas Deus é causa, não por fazer algo, mas por não fazer mais bem, pois pelo fato de que Deus não influi a graça se segue, no castigado, a privação da graça. Há uma pena de sentido, que se inflige por alguma ação e, desta, Deus é autor fazendo algo também.

Ao primeiro [argumento], portanto, há que se dizer que um bem particular é inverso a outro bem particular, como o quente em relação ao frio; e que ambos procedem de Deus. E não se segue, por isto, que Deus não seja autor da paz, porque a própria luta entre os contrários se ordena a alguma união, pois convêm na forma do misto, e também porquanto no universo se ordenam por modo de certa consonância. Assim, pois, não é inconveniente, por mais que o bem natural proceda de Deus, que também a pena, que contraria esse bem natural, proceda, enquanto é boa, de Deus.

Ao segundo, há que se dizer que nenhum mal nem nenhum defeito é pretendido nem por Deus nem por nenhum outro agente; mas que todo mal e defeito se devem a algum defeito, quer da causa eficiente, quer da matéria recipiente. Pois bem: o mal de culpa resulta do defeito da causa eficiente; e, portanto, não pode ser reduzido à Causa Eficiente, que não pode falhar. Porém, o mal da pena se deve a um defeito da matéria, como se vê por isto: o juiz justo tende a implantar a ordem da justiça em seus súditos; essa ordem não pode ser recebida no pecador senão que é castigado por algum defeito, e assim, por mais que esse defeito, por cuja causa a pena é um mal, não seja pretendido pelo juiz, senão a ordem da justiça; no entanto, o juiz justo é autor da pena, já que a pena é algo ordenado, e assim Deus é autor das penas.

Ao terceiro, há que se dizer que, por mais que Deus não seja autor da ação torpe, já que comporta uma deformidade, no entanto, é causa sua, já que é certa ação, e, portanto, também pode ser chamado causa daquilo que é efetuado por essa ação.

Ao quarto, há que se dizer que a pena não inclina ao mal de culpa diretamente, por modo de hábito e disposição, mas indiretamente, já que pela pena alguém é privado de algo pelo qual era retraído da culpa. E isto não é inconveniente; que se diga que Deus subtrai aquilo pelo qual alguém se conservava imune da culpa, isto é, a graça.

Ao quinto, há que se dizer que por mais que a corrupção da graça em si seja algo mau, no entanto, que este que é indigno da graça seja privado dela é bom e justo; e, deste modo, procede de Deus como Ordenador” (São Tomás de Aquino, Comentário às Sentenças, l.2, d.37, q.3, a.1).

Obviamente, uma coisa é que estas respostas tenham sido dadas em seu momento, e outra coisa é que Alejandro não tenha se convencido delas. Porém, isto é uma coisa, e outra é dizer aos seus leitores que não recebeu resposta, deixando, ao mesmo tempo, de indicar-lhes onde se encontram os argumentos dos seus oponentes, para assim oferecer-lhes somente a sua versão, fechando-se numa bolha. Alejandro alega em sua nova introdução que não houve um verdadeiro debate porque não lhe responderam a essas objeções, porém, eu sustento que, se não houve verdadeiro debate foi porque ele não foi suficientemente honesto com seus leitores, para permitir-lhes ouvir o que tínhamos a dizer.

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NOTAS
[1] Artigo em espanhol: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php/1502010840-novedades-sobre-el-debate-de
[2] Artigo em espanhol: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php/1405210504-respuesta-a-alejandro-bermude
[3] Artigo em espanhol: http://infocatolica.com/blog/praeclara.php/1406250544-title
[4] Artigo em espanhol: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php/1404050617-idios-castiga-o-no-castiga
[5] Artigo em espanhol: http://fraynelson.com/blog/2014/06/14/en-torno-a-una-polemica-teologica/
[6] Foi isto o que disse Mons. José Ignacio Munilla, bispo de San Sebastian, quando foi consultado acerca deste debate: “Em primeiro lugar, deve-se distinguir entre o ‘castigo eterno’ e o ‘castigo temporário’. Por ‘castigo eterno’ entendemos o castigo definitivo aos ímpios, relatado explicitamente em Mateus 26 (na Sagrada Escritura), e não é, absolutamente, incompatível com [o fato de] que ‘Deus é amor’. Dizer que ‘Deus é amor’ e, portanto, não pode existir o castigo eterno é contrapor os conceitos de maneira infantil. Em Deus a justiça e a misericórdia não são duas coisas: elas se fundem e são uma só. / No tocante ao ‘castigo temporário’, pode-se dizer que Deus não envia castigos temporais? Não, não se pode dizer tal coisa. Na Sagrada Escritura há passagens muito claras, onde se fala dos castigos de Deus, como quando fala das pragas de Egito; ou de Davi, que após ter pecado, Deus lhe pediu que escolhesse entre diversos castigos. Não cabe dizer que ‘Deus não castiga nunca’; seria incorreto. Nosso Papa emérito Bento XVI, no Sínodo dos Bispos do ano de 2008, disse uma frase que chamou a atenção de muita gente; ele disse: ‘…Deus teve que recorrer com frequencia ao castigo…’”. A explicação completa está nesta url (podcast em espanhol): http://www.apologeticacatolica.org/Descargas/MunillaDiosCastiga.mp3
[7] Assim explica o cardeal Zeferino González, em sua obra “Filosofia Elementar”: “1ª) Por mais que Deus não pretenda o mal físico ‘per se’ ou como fim, já que não se deleita no mal de suas criaturas, e longe de chatear-se, ama tudo o que criou, é induvidável que pode escolhê-lo ou querê-lo, como meio proporcional para realizar algum fim bom. A razão é que, neste caso, a volição do mal físico por parte de Deus, tem por termo e como fim o bem que pressupõe a existência do mal físico como meio, ou falando com mais propriedade, como condição hipotética da existência do bem pretendido por Deus; e digo hipotética, porque a existência e realização de determinados bens, como resultante de tais ou quais males físicos, se acham em relação com o grau de perfeição relativa que Deus quis comunicar a este mundo, e que poderia ser superior em outro dos possíveis [mundos]. / 2ª) No que toca ao mal moral, Deus não o pretende ou quer, nem como meio nem como fim, porque, além de repugnar à santidade infinita de Deus, o mal moral envolve a subversão da ordem necessária que toda criatura, e mais que todas, a criatura inteligente e livre, toca a Deus como último fim da Criação. Contudo, isto não impede que Deus permita sua existência, porque esta permissão não envolve uma aprovação do mesmo, e por outra parte, nenhuma obrigação tem Deus de impedir sua existência. Ainda mais, todavia: dada a existência de seres inteligentes e livres, pode-se dizer conveniente e até natural a permissão do mal moral por parte de Deus; porque a verdade é que a Deus, como governador supremo e universal do mundo, corresponde permitir que cada ser aja em conformidade com as condições próprias da sua natureza. A vontade humana é de sua natureza defectível, flexível em ordem ao bem e ao mal, e livre e responsável em seus atos. Logo, a Deus, como previsor universal do mundo e em especial do homem, só lhe corresponde dar a este os meios e auxílios necessários para operar o bem moral, porém sem o matar nem anular sua liberdade, impondo-lhe a necessidade física de agir bem. Isto sem contar que a realização do mal moral serve também: a) para manifestar que o homem, quando faz o bem, o faz livremente, e é credor de prêmio; b) para revelar a paciência e longanimidade do mesmo Deus; c) para manifestar sua misericórdia, perdoando, e sua justiça, castigando. / 3ª) Infira-se do que foi dito até aqui: 1º – que nem a existência do mal físico, nem a do mal moral, envolvem repugnância ou contradição absoluta com a Providência e a bondade de Deus; 2º – que até podemos apontar razões plausíveis e fins racionais e justos para sua existência; 3º – que Deus, absolutamente falando, poderia impedir a existência do mal físico e moral, quer com a criação de outro mundo, quer com uma disposição diferente deste [mundo]; 4º – que ainda que possamos apontar alguns fins prováveis da permissão do mal moral, ignoramos a causa final desta permissão por parte de Deus, já que não sabemos com certeza qual seja o fim principal e os motivos divinos desta permissão, devendo, portanto, dizer com a Escritura: ‘Quis cognovit sensum Domini, aut quis consiliarius ejus fuit?’. Com maior razão, é aplicável esta reflexão à nossa ignorância em relação aos fins particulares, a que se subordina a existência do mal físico e moral no ser A ou B. / Que a volição do mal físico, no sentido exposto, não se opõe à bondade divina, prova-se ademais porque, na hipótese contrária, Deus não poderia querer e realizar certos bens e perfeições de uma ordem superior. A pouco que se reflita, se reconhecerá, sem dúvida, que a ausência absoluta e completa do mal físico levaria consigo a ausência da paciência, da fortaleza, da magnanimidade, da constância e, para dizê-lo de uma vez, das características mais belas e sublimes da virtude em todas suas múltiplas manifestações. Ainda mais, todavia: a ausência de todo mal físico levaria consigo à morte ou à atonia absoluta da sociedade humana, com suas artes, ciências e indústrias, que vêm a ser a luta perseverante da humanidade contra o mal físico.
[8] São Tomás, Suma Teológica, l.2, q.108, a.4: “Pode-se considerar a pena de dois modos: primeiro, como castigo; e, neste sentido unicamente, o pecado a merece, porque por ela se restabelece a igualdade da justiça, enquanto que aquele que pecando se excedeu, seguindo sua própria vontade, padece contra sua vontade algum dano; pelo que, como todo pecado é voluntário, inclusive o original, conforme o que foi dito (l.2 q.81 a.1), se segue que ninguém é castigado desta forma senão pelo pecado voluntário. / E, a partir de outro ângulo, a pena pode ser considerada como remédio, que não só é curativo do pecado passado, mas que tem assim mesmo virtude para preservar do pecado futuro e para empurrar-nos a fazer algo bom. Conforme a isto, alguém é castigado algumas vezes sem culpa, embora nunca sem causa. No entanto, há que se ter em conta que nunca o remédio priva de um bem maior visando um bem menor — por exemplo, deixar alguém cego para curar-lhe o calcanhar —, mas, às vezes, causa um dano no [bem] menor para prestar ajuda no [bem] mais importante. E como os bens espirituais são os de maior valor, e os temporais, os de menor, é que às vezes se castiga alguém nestes últimos, sem culpa — por exemplo, com muitas penalidades nesta vida presente, que Deus inflige para que sirvam de humilhação ou de prova. Ao contrário, não se castiga a ninguém nos bens espirituais sem culpa própria, nem nesta nem na outra vida, já que na vida futura as penas não são remédio, mas consequência da condenação espiritual”.

A “Ave Maria” explicada parte por parte

Ave Maria

1 – “Ave, Maria (alegra-te, Maria).”  (Lc 1,28)

A saudação do anjo Gabriel abre a oração da Ave-Maria.

É o próprio Deus que, por intermédio de seu anjo, saúda Maria.

Nossa oração ousa retomar a saudação de Maria com o olhar que Deus lançou sobre sua humilde serva, alegrando-nos com a mesma alegria que Deus encontra nela.

Alguns usam Salve Maria em muitas orações, pois acham errado dizer Ave, pois era uma saudação romana, mas  quando a Bíblia foi traduzida para o latim, São Jerônimo utilizou a forma romana.

Dizer Ave ou Salve, hoje , para nós não há muita diferença, já que são saudações que caíram em desuso, porém por séculos a oração ficou conhecida como Ave Maria.

2 – “Cheia de graça, o Senhor é convosco.” (Lc1,28)

As duas palavras de saudação do anjo se esclarecem mutuamente.

Maria é cheia de graça porque o Senhor está com ela.  A graça com que ela é cumulada é a presença daquele que é a fonte de toda graça.

”Alegra-te, filha de Jerusalém… o Senhor está no meio de ti” (Sf 3,14.17a).

Maria, em quem vem habitar o próprio Senhor, é em pessoa a filha de Sião, a Arca da Aliança, o lugar onde reside a glória do Senhor: ela é “a morada de Deus entre os homens” (Apoc 21,3).

”Cheia de graça”, e toda dedicada àquele que nela vem habitar e que ela vai dar ao mundo.

3 – “Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.” (Lc 1,41)

Depois da saudação do anjo, tornamos nossa a palavra de Isabel.

“Repleta do Espírito Santo” (Lc 1,41), Isabel é a primeira na longa série das gerações que declaram Maria bem-aventurada’: “Feliz aquela que creu…” (Lc 1,45):

Maria é “bendita entre as mulheres” porque acreditou na realização da palavra do Senhor.

Abraão, por sua fé, se tomou uma bênção para “todas as nações da terra” (Gn 12,3).

Por sua fé, Maria se tomou a mãe dos que crêem (Apoc 12,17) (Jo 19, 26-27), porque, graças a ela, todas as nações da terra recebem Aquele que é a própria bênção de Deus: “Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”.

4 –  “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós…”

Com Isabel também nós nos admiramos: “Donde me vem que a mãe de meu Senhor me visite?” (Lc 1,43).

Porque nos dá Jesus, seu filho, Maria é Mãe de Deus e nossa Mãe; podemos lhe confiar todos os nossos cuidados e pedidos: ela reza por nós como rezou por si mesma:

“Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Confiando-nos à sua oração, abandonamo-nos com ela à vontade de Deus: “Seja feita a vossa vontade”.

Maria é Mãe de Deus, pois foi de Maria que nasceu Jesus (Mt 1, 16) (Gal 4,4) , o nosso Senhor (Lc 1,43), Filho de Deus (Lc 1,35) e Deus (Jo 1,1), (Jo 5,18) com o Pai e o Espírito Santo (Mt 28,19).Maria é Mãe de Deus, pois Jesus não é metade homem e metade Deus, Ele é Deus e homem ao mesmo tempo.

Maria é Mãe no sentido de ter gerado em seu ventre e em seu coração Jesus, nosso Senhor e Deus.

5 – “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte.”

Assim, pedindo a Maria que reze por nós, reconhecemo-nos como pobres pecadores e nos dirigimos à “Mãe de misericórdia”  (Jo 2,3),  à Toda Santa (Lc 1,28).

Entregamo-nos a ela “agora”, no hoje de nossas vidas.E nossa confiança aumenta para desde já entregar em suas mãos “a hora de nossa morte”, pois nessa hora compareceremos diante de Deus (Hb 9, 27) para sermos julgados.

Que ela esteja então presente, como na morte na Cruz de seu Filho, e que na hora de nossa passagem ela nos acolha como nossa Mãe (Jo 19,27) , para nos conduzir a seu Filho, Jesus, no Paraíso, pois o seu pedido é poderoso (Jo 2, 3ss).

Liturgia: mistério da salvação – Parte V

Fonte: Padre Paulo Ricardo

Neste último artigo sobre os ensinamentos de Monsenhor Guido Marini a respeito da liturgia, oferecemos uma distinção entre música sacra e música profana na Missa

Liturgia: mistério da salvação - Parte V

A Missa católica foi o grande berço da música ocidental. Através da polifonia e do tradicional cantochão – o gregoriano -, a Igreja pôde transmitir a Palavra de Deus aos quatro cantos da terra, atingindo tanto os incautos quanto as almas mais elevadas. Foi precisamente por isso que, ao longo de sua história, o Magistério procurou distinguir, repetidas vezes, a música litúrgica ou sacra dos cantos seculares.

Com o advento da revolta protestante e o surgimento de expressões musicais das mais variadas, começaram a proliferar práticas fundamentalmente alheias ao autêntico espírito litúrgico. Foi então que o Concílio de Trento interveio no conflito cultural da época – lembra Monsenhor Guido Marini – “restabelecendo a norma pela qual era prioritário na música aderir à palavra, limitando o uso dos instrumentos e indicando clara diferença entre música profana e música sacra”. A contrarreforma do Concílio simplesmente pôs abaixo o castelo de cartas do protestantismo. A liturgia romana foi “um dos instrumentos mais poderosos da propaganda jesuítica”, derriçando as heresias das seitas ao mesmo tempo em que revigorava a tradição musical daquele período.01

Nos anos seguintes à reforma tridentina, a Igreja continuou sustentando o canto gregoriano como a legítima música litúrgica. E ainda hoje o ensinamento permanece o mesmo. Dando vitalidade aos trabalhos de São Pio X, diz o Concílio Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum Concilium, que a “Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na ação litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.”02Todavia, apesar das claras admoestações dos padres conciliares – e, obviamente, do magistério posterior -, abriu-se espaço na Missa para expressões bruscamente opostas ao “sentire cum Ecclesia”, chegando-se a tachar a música louvada pelo Sacrossanto Concílio como “velharia”, “coisa ultrapassada” e outros pejorativos.

A argumentação contra o tradicional canto litúrgico – bem como a outras áreas da Tradição – redunda na ideologia do pauperismo. A Igreja não deveria, nas suas celebrações, assumir uma posição rígida, mas simplista, adotando a criatividade popular de forma totalmente subjetivista e aleatória, como se a liturgia fosse um canteiro de obras, sempre aberto a modificações. O protagonista da ação litúrgica passa a ser o povo, qual ocorre nos regimes democráticos da teologia calvinista: sem espaço para distinções, o culto deve ser de todos.

Com efeito, assim como o simplismo de Calvino acabou com a música na França de sua época, o mesmo raciocínio está destruindo as celebrações católicas de agora, pois no centro da ação não está Deus e a reverência devida a Ele, mas o gosto pessoal de um grupo que prevalece, de paróquia em paróquia, sobre o de outros03. E “uma Igreja que se baseia nas decisões da maioria” – recorda o Cardeal Joseph Ratzinger – “torna-se uma Igreja meramente humana”, uma vez que o que se faz a si mesmo “tem sabor do ‘si mesmo’ que desagrada a outros ‘si mesmos’ e bem cedo revela a sua insignificância”04.

No seu livro sobre a liturgia, Monsenhor Guido Marini procura lembrar que “a música sacra não pode ser entendida como expressão da pura subjetividade” já que “essas formas musicais”, ou seja, o gregoriano e a polifonia – “na sua santidade, bondade e universalidade – são precisamente as que traduzem o autêntico espírito litúrgico em notas, melodia e canto: encaminhando para a adoração do mistério celebrado; tornando-se musicada exegese da palavra de Deus”. Do mesmo modo, concorda Bento XVI quando diz que “nem sequer a grande música o gregoriano, ou Bach, ou Mozart é algo do passado, mas vive da vitalidade da liturgia e da nossa fé. Se a fé for viva, a cultura cristã não se tornará algo do “passado”, mas permanecerá viva e presente.”05

Recentemente, a escritora brasileira Adélia Prado fez uma ótima colocação acerca da dessacralização da liturgia. A teologia da libertação, comentava, na ânsia de atingir o pobre acabou por torná-lo mais pobre, pois retirou-lhe a única riqueza que ainda lhe restava: a beleza da liturgia.06 No lugar do órgão colocou-se a sanfona, no lugar das antífonas, os gritos de guerra, e a isso somados os pés de bananeiras, cocos, os berrantes e bandeirolas de festa junina. Ora, é evidente que assim a missa se torna um passatempo, um entretenimento tacanho e brega que, mais cedo ou mais tarde, deixará de ser interessante como qualquer programa de auditório.

O rigor da Igreja com o canto e com as demais partes da missa tem um nome: amor. É por amor a seu Divino Esposo, Jesus, que a Igreja adorna o templo com as mais belas peças e objetos. E assim também com a música. Ela deve se unir ao louvor dos anjos do céu, sendo uma verdadeira expressão de adoração a Deus, que motive sempre e mais e mais o seu rebanho a responder o imperativo das Sagradas Escrituras: “Cantai ao Senhor um cântico novo” (Cf. Sl 96, 1)

Por Equipe Christo Nihil Praeponere

  1. CARPEAUX, Otto Maria. O Livro de Ouro da História da Música. Ediouro
  2. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 116 e 117
  3. Ibidem n. 1
  4. RATZINGER, Joseph. Compreender a Igreja hoje, vocação para comunhão. Editora Vozes
  5. Audiência Geral de Bento XVI
  6. Discurso de Adélia Prado sobre a liturgia católica

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