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Apologética

Martinho Lutero tinha razão?

Autor: José Miguel Arráiz
Fonte: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php
Trad.: Carlos Martins Nabeto

Já há algum tempo temos ouvido de altos prelados da Igreja reconhecimentos e elogios à figura de Lutero. Se tem dito de tudo, desde coisas moderadas (em que se admite que ele pode ter sido movido por uma boa e reta intenção) até louvores desmedidos (situando-o como parte da grande Tradição da Igreja ou até se admitindo que teve razão no que diz respeito à doutrina da justificação). A partir da ponto de vista de um leigo, quero neste artigo compartilhar o que considero acertado e desacertado nestes elogios politicamente corretos feitos em nossa época sobre a figura e doutrina de Lutero.

SOBRE AS BOAS INTENÇÕES DE MARTINHO LUTERO 

Saber exatamente quais eram as intenções de Lutero para agir como agiu nos tempos da Reforma Protestante é algo impossível, pois como todos nós sabemos, o fôro interno só é conhecido por Deus. O que podemos, sim, fazer é formar uma opinião aproximada e falível, evitando cair em juízo temerário quanto ao que o próprio Lutero admitia e o estudo objetivo dos fatos históricos. A partir desta perspectiva, o máximo que se poderia admitir, na melhor das hipóteses, como mera possibilidade, é que Lutero pode ter agido com o que chamamos “consciência reta” ainda que errônea.

Tal como tradicionalmente nos foi ensinado, age em “consciência reta” quem julga da bondade ou malícia de um ato com fundamento e prudência, diferentemente da “consciência falsa”, que julga com irreflexão e sem fundamento sério. Ao contrário, age com “consciência verdadeira” aquele que além de agir em consciência reta, acerta em seu juízo e age de acordo com ao ordem moral objetiva. Não se deve confundir a “consciência reta” com a “conciência verdadeira”. Uma pessoa pode agir com consciência reta quando, com suas limitações, colocou todo o empenho em agir corretamente independentemente de acertar (consciência verdadeira) ou se equivocar por algum erro especulativo (consciência errônea). Age em consciência reta invencivelmente errônea quem, depois de ter feito todo o possível para agir corretamente, ainda assim erra, porém age de acordo com o que a sua consciência lhe dita, consciência que, neste caso, estaria deficientemente formada.

Nos próprios escritos de Lutero o encontramos admitindo que passou por uma intensa luta interior, onde lhe atormentava pensar que poderia ter agido equivocadamente, mas que finalmente ficou convencido de que agia para a glória de Deus. A este respeito, escreveu Lutero:

– “Certa vez [o diabo] me atormentou e quase me estrangulou com as palavras de Paulo a Timóteo; tanto que o coração se me queria dissolver no peito: ‘Tu foste a causa de que tantos monges e monjas abandonassem seus mosteiros’. O diabo habilmente me tirava da vista os textos sobre a justificação… Eu pensava: ‘Quem ordena estas coisas és somente tu; e, se tudo for falso, tu serás o responsável por tantas almas caírem no inferno’. Com essa tentação cheguei a sofrer tormentos infernais, até que Deus me tirou dela e me confirmou que meus ensinamentos eram palavra de Deus e doutrina verdadeira” (Martinho Lutero, Tisch. 141,I,62-63).

– “Antes de tudo, o que temos que estabelecer é se nossa doutrina é palavra de Deus. Se isto se verifica, estamos certos de que a causa que defendemos pode e deve ser mantida, e não há demônio que possa lançá-la abaixo… Eu, em meu coração, já rejeitei qualquer outra doutrina religiosa, seja ela qual for, e venci aquele molestíssimo pensamento que o coração murmura: ‘Tu és o único que possuis a palavra de Deus? E os demais, não a têm?’… Tal argumento o acho válido para todos os profetas, àqueles que também se lhes foi dito: ‘Vós sois poucos, o povo de Deus somos nós’” (Martinho Lutero, Tisch. 130,I,53-54).

Parece que Lutero nunca se livrou da dúvida e, ao longo dos anos, retornava a ele um persistente peso de consciência, que identificava como tentações do demônio. No ano de 1535, já na avançada idade de 52 anos, admite todavia que acha o argumento “bastante capcioso e robusto dos falsos apóstolos”, que lhe impugnam deste modo: “Os apóstolos, os Santos Padres e seus sucessores nos deixaram estes ensinamentos; tal é o pensamento e a fé da Igreja. Pois bem, é impossível que Cristo tenha deixado a sua Igreja errar por tantos séculos. Somente tu sabes mais que tantos homens santos e que toda a Igreja… Quem és tu para atrever-te a dissentir de todos eles e para colocar-nos violentamente um dogma diverso? Quando Satanás urge este argumento e quase conspira com a carne e com a razão, a consciência se aterroriza e desespera, e é preciso entrar continuamente dentro de si mesmo e dizer: ainda que os santos Cipriano, Ambrósio e Agostinho; ainda que São Pedro, São Paulo e São João; ainda que os anjos do céu te ensinem outra coisa, isto é o que eu sei de certo: que não ensino coisas humanas, mas divinas; ou seja, que [no negócio da salvação] tudo o atribuo a Deus e nada aos homens” (WA 40,1; pp.130-131).

O certo é que se tal boa intenção existiu, a soberba pouco a pouco o levou a afastar-se cada vez mais do ideal evangélico, enchendo seu coração de ódio e maldições, como ele mesmo admitiu:

– “Visto que não posso rezar, tenho que maldizer. Direi: ‘Santificado seja teu nome’, porém acrescentarei: ‘Maldito, condenado e desonrado seja o nome dos papistas e de todos quantos blasfemam o teu nome’. Direi: ‘Venha teu reino’, e acrescentarei: ‘Maldito, condenado e destruído seja o papado com todos os reinos da terra, contrários ao teu reino’. Direi: ‘Faça-se tua vontade’, e acrescentarei: ‘Malditos, condenados, desonrados e aniquilados sejam todos os pensamentos e planos dos papistas e de quantos maquinam contra a tua vontade e conselho’. Verdadeiramente, assim rezo todos os dias, sem cessar, oralmente e com o coração; e comigo, todos quantos crerem em Cristo” (WA 30,3; p.470).

O cardeal Joseph Ratzinger, antes de se tornar Papa, pontualizou a este respeito:

– “Há que se levar em conta que não só existem anátemas por parte católica contra a doutrina de Lutero, como também existem desqualificações bastante explícitas contra o Catolicismo por parte do reformador e de seus companheiros; reprovações que culminam na frase de Lutero de que restamos divididos para a eternidade. É este o momento de referir-nos a essas palavras cheias de raiva pronunciadas por Lutero em relação ao Concílio de Trento, nas quais restou finalmente clara sua rejeição à Igreja católica: ‘Teria que fazer prisioneiro ao Papa, aos cardeais e a todos esses canalhas que o idolatram e santificam; tê-los por blasfemos e logo arrancar-lhes a linguagem coalhada; colocá-los todos na fila da forca… Então se lhes poderia permitir que celebrassem o Concílio, ou o que quer que seja, a partir da forca ou no inferno, com os diabos’” (Card. Joseph Ratzinger, “Igreja, Ecumenismo e Política: novos ensaios de eclesiologia”, Biblioteca de Autores Cristãos, Madri, 1987, p. 120).

Uma vez mergulhado nessa espiral de loucura, todos aqueles que divergiam de Lutero em qualquer ponto de doutrina ou o consideravam inimigo era objeto dos qualificativos mais sujos e vulgares: ao duque Jorge da Saxônia, chama-o de “assassino”, “traidor”, “infame” “assassino profissional”, “derramador de sangue”, “patife sem-vergonha”, “mentiroso”, “maldito”, “cão”, “sanguinário”, “demônio”. Os insultos contra o Papa sempre foram uma constante e é quase impossível contabilizá-los: “anticristo maldito”, “burro papal”, “asno papal”, “bispo dos hermafroditas e Papa dos sodomitas”, “apóstolo do diabo”. Não só os católicos eram objeto de seus opróbrios, como também passaram a alcançar os próprios protestantes: a Tomás Münzer chama-o de “arquidemônio que não realiza senão latrocínios, assassinatos e derramamentos de sangue”; seu aliado Andreas Karlstadt, quando passa a divergir dele, se transforma em um “sofista, essa mente louca”, “muito mais louco que os papistas”; o mesmo ocorre com Ulrico Zwinglio, que quando nega a presença de Cristo na Eucaristia passa a ser “digníssimo de santo ódio, pois age tão indecente e maliciosamente em nome da santa palavra de Deus” e um “servidor do diabo”.

É evidente que Lutero não era precisamente a pessoa ideal para tentar reformar a Igreja; e já passados tantos séculos desde aqueles acontecimentos, resta claro que a figura do reformador protestante não tem por que seguir separando católicos e protestantes. Eu mesmo, que não nutro simpatia por tão sinistro personagem, não teria problema em admitir que pode ter tido, no começo, justa indignação pelos abusos no tráfico de indulgências, ou que estava sinceramente convencido de estar na verdade. E ao admitir isto, não vejo que esteja sendo concedido a ele qualquer grão de razão.

DO OBSCURECIMENTO DO SENTIDO DA GRATUIDADE DA SALVAÇÃO NA IGREJA CATÓLICA 

Porém, outro dos louvores que se costuma ouvir a respeito da figura de Lutero e que já começa a ser preocupante, é aquele onde se admite e sustenta que durante séculos perdeu-se, na Igreja Católica, o sentido da gratuidade da salvação divina e foi Lutero quem teve o mérito de recuperá-la. Quanto a isso, pode-se mencionar concretamente a pregação feita pelo padre Rainiero Cantalamessa, em março deste ano [de 2016], na Basílica de São Pedro, em que afirmou o seguinte:

– “Existe o perigo de que alguém ouça falar da justiça de Deus e, sem saber o significado, ao invés de animar-se, se assuste. Santo Agostinho já o havia explicado claramente: “A ‘justiça de Deus’ – escrevia ele – é aquela pela qual Ele nos faz justos mediante sua graça; exatamente como ‘a salvação do Senhor’ (Salmo 3,9) é aquela pela qual Ele nos salva” (Do Espírito e da Letra 32,56). Em outras palavras: a justiça de Deus é o ato pelo qual Deus faz justos, agradáveis a Ele, aos que crerem em seu Filho. Não é um ‘fazer-se justiça’, mas um ‘fazer justos’. Lutero teve o mérito de trazer à luz esta verdade, depois de que, durante séculos, pelo menos na pregação cristã, se havia perdido o sentido; e é isto, sobretudo, o que a Cristiandade deve à Reforma, a qual no próximo ano cumpre o quinto centenário. “Quando descobri isto – escreveu mais tarde o reformador – senti que renascia e me parecia que se me abriram de par em par as portas do paraíso”” (Prefácio às obras em latim, ed. Weimar 54, p.186).

Se bem que seja possível que na época de Lutero alguns pregadores de indulgências pudessem deixar em segundo plano a doutrina sobre a gratuidade da graça (desconheço até que ponto), não é justo atribuir isto à pregação cristã da Igreja durante séculos. Como bem fez notar o sacerdote e doutor em teologia José María Iraburu em um artigo publicado recentemente[1], sustentar isto é cometer uma grande injustiça para com aqueles pregadores que mais prestígio e influência tiveram na Cristiandade de seu tempo, tanto antes como depois da época de Lutero, e que ensinaram sempre a verdadeira doutrina católica da graça e da justificação, e estavam livres de toda espécie de pelagianismo ou semipelagianismo; entre eles, recordou: Santa Hildegarda de Bingen (+1179), São Domingo de Gusmão (+1221), São Francisco de Assis (+1226), Santo Antonio de Pádua (+1231), Beato Ricério de Múcia (+1236), Davi de Augsburgo (+1272), São Tomás de Aquino (+1274), São Boaventura (+1274), Santa Gertrudes de Helfta (+1302), Santa Ângela de Foligno (+1309), mestre Eckahrt (+1328), Taulero (+1361), Beato Henrique Suson (+1366), Santa Brígida da Suécia (+1373), Santa Catarina de Sena (+1380), Ruysbroeck (+1381), Beato Raimundo de Cápua (+1399), São Vicente Férrer (+1419), São Bernardino de Sena (+1444), São João de Capistrano (+1456), Tomás de Kempis (+1471), Santa Catarina de Gênova (+1507), Barnabé de Palma (+1532), Francisco de Osuna (+1540), Santo Inácio de Loiola (+1556), São Pedro de Alcântara (+1562), São João d’Ávila (+1569), e tantos outros.

Realmente se pode afirmar com justiça que estes santos, doutores, pregadores e mestres espirituais desconheceram em suas pregações a gratuidade da justificação do homem pela graça que na fé tem seu início? Obscureceram em seu tempo, “durante séculos”, “ao menos na pregação” ao povo, o entendimento da salvação como pura graça concedida pelo Senhor gratuitamente? As pregações de todos esses mestres e doutores, conservadas hoje em dia, são uma clara evidência de que isso não é certo; e ainda que tenhamos o mais nobre desejo de melhorar as relações com nossos irmãos luteranos, a solução não pode ser lançada injustamente contra os nossos antepassados na fé…

DIFERENÇAS ENTRE A DOUTRINA CATÓLICA E A LUTERANA 

Para compreender quais são as diferenças reais que subsistem entre a doutrina católica e a luterana, temos que resumir, ainda que seja bem brevemente, os erros do ex-monge alemão:

A concupiscência é sempre pecado 

Nós, católicos, cremos que se comete pecado ao consentir o impulso pecaminoso, não simplesmente ao senti-lo. Para Lutero, ao contrário, a concupiscência é pecado já em si mesma, formal e imputável. Este primeiro erro conduziu Lutero a uma vida de tormento, porque apesar de todas as boas obras que tentava fazer, não conseguia alcançar a paz interior ao sentir-se constantemente em pecado mortal e próximo da condenação eterna.

Neste estado psicológico, Lutero foi conduzido ao seu segundo erro: a negação total da liberdade humana.

O homem não é livre 

Tal como sustenta Lutero, em sua obra “De Servo Arbitrio”, o pecado original destruiu totalmente o livre arbítrio da pessoa humana. Para o ex-monge alemão, o homem é já incapaz de fazer alguma obra boa; portanto todas as suas obras, ainda que tenham uma aparência bela, são, não obstante e provavelmente, pecados mortais… E se as obras dos justos são pecado, como afirma sua conclusão, com maior motivo o são as dos que ainda não foram justificados.

A doutrina católica ensina, ao contrário, que em razão do pecado original o livre arbítrio encontra-se debilitado, porém não aniquilado, e que ainda que para efetuar atos saudáveis (atos que conduzem à salvação) é imprescindível a graça de Deus, podendo realizar sem a ajuda da graça obras moralmente boas.

O homem se justifica somente pela graça através da fé fiducial ou fé somente 

O terceiro erro de Lutero parte do anterior, pois conclui que se o homem não é livre, aqueles que se salvam o conseguem porque Deus lhes outorga a salvação de uma forma absolutamente passiva e extrínseca. O homem não coopera em nada para sua salvação, mas tudo se resolve pela certeza subjetiva de ter sido justificado pela fé graças à imputação dos méritos de Cristo. Basta aceitar Cristo como salvador e confiar em estar salvo para assegurar a salvação, independentemente se age conforme à vontade de Deus ou se descumpre os Mandamentos.

A partir desta perspectiva, o homem continua sendo pecador, porém é declarado justo, de uma forma semelhante como se tomássemos um homem maltrapilho e sujo e o cobríssemos sem lavá-lo com uma túnica esplêndidamente branca. Ao olhar para ele, o Juiz miraria a túnica branca e resplandecente (que representa Jesus Cristo, o qual morreu por nossos pecados) ao invés da sujeira que se encontra debaixo dela.

Nós, católicos, ao contrário, cremos que podemos cooperar na nossa justificação, não com nossas próprias forças, mas porque a graça nos inspira e nos capacita para fazê-lo. Cremos, ademais, que Deus não só nos declara justos, como também nos faz justos; que nos santifica e renova, de modo que, por meio da graça, somos uma nova criatura. Consequentemente, devemos viver como nova criatura. A fé deve fazer-se efetiva no amor, no cumprimento dos Mandamentos e nas obras de caridade.

A doutrina luterana, ainda que piedosamente envernizada e ainda que pretenda dar primazia à graça, no fundo apresenta uma noção deficiente da mesma, crendo que ela é impotente na hora de transformar o homem, não o tornando verdadeiramente santo, conformando-se então por declará-lo somente justo, permanecendo imundo e pecador.

Os justificados não podem perder sua salvação 

Se se conclui erroneamente que o homem se salva somente pela fé, é compreensível que se conclua que o crente justificado não pode perder sua salvação ainda que não obedeça os Mandamentos e cometa pecados graves. Daí que em 1521, a 1º de agosto, escreve Lutero em uma carta a Melanchthon:

– “Se és pregador da graça, prega uma graça verdadeira e não fictícia; se a graça é verdadeira, deves cometer um pecado verdadeiro e não um fictício. Deus não salva os que são somente pecadores fictícios. Seja um pecador e peca audazmente, porém crê e alegra-te em Cristo ainda mais audazmente… enquanto estivermos aqui [neste mundo] temos que pecar… Nenhum pecado nos separará do Cordeiro, ainda que forniquemos e assassinemos mil vezes ao dia”. 

Nós, católicos, ao contrário, cremos que o crente justificado pode decair do estado de graça de Deus se comete pecado mortal. O Evangelho está cheio de advertências neste sentido. Cristo nos fala daquele ramo (crente) que deixa de dar fruto (fazer boas obras) e é cortado e lançado ao fogo (João 15); deixa claro que não somente aquele que confessa sua fé Nele entrará no Reino dos Céus, como também aquele que faz a vontade de Deus (Mateus 7,21). Quando o jovem rico pergunta a Jesus o que deve fazer para salvar-se, Ele lhe responde que cumpra os Mandamentos (Mateus 19,17). A epístola de São Tiago, em seu capítulo 2, contém praticamente uma refutação formal às teses de Lutero, a ponto de que este tentou por todos os meios excluí-la da Bíblia e a qualificou como “a epístola de palha”.

OS ERROS DERIVADOS DA DOUTRINA DE LUTERO 

Porém, os erros de Lutero não acabaram ali e, como uma fila de peças de dominó que cai um atrás do outro, seguiram-se multiplicando. Nesse sentido pontualizou o cardeal Joseph Ratzinger:

– “Lutero, após a ruptura definitiva, não só rejeitou categoricamente o papado, como também qualificou de idolátrica a doutrina católica da missa, porque via nela uma recaída na Lei, com a consequente negação do Evangelho. Reduzir todas estas confrontações a simples mal-entendidos é, no meu modo de ver, uma pretensão iluminista, que não indica a verdadeira medida do que foram aquelas lutas guiadas pela paixão, nem o peso da realidade presente em suas alegações. A verdadeira questão, portanto, pode unicamente consistir em nos perguntar até que ponto, hoje, é possível superar as posturas de então e alcançar um consenso que vai além daquele tempo. Em outras palavras: a unidade exige passos novos e não se realiza mediante artifícios interpretativos. Se em seu dia [a divisão] se realizou com experiências religiosas contrapostas, que não podiam encontrar espaço no campo vital da doutrina eclesiástica transmitida, tampouco hoje a unidade se forja somente mediante discussões multifacetadas, mas com a força da experiência religiosa. A indiferença é um meio de união tão somente na aparência” (Card. Joseph Ratzinger, “Igreja, Ecumenismo e Política: novos ensaios de eclesiologia”, Biblioteca de Autores Cristãos, Madri, 1987, pp. 120-121).

Dito em linguagem simples: as diferenças existem e ignorá-las não fará que desapareçam, ponto este que tratarei a seguir.

ESTAMOS HOJE DE ACORDO, CATÓLICOS E PROTESTANTES, NO QUE DIZ RESPEITO À DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO? 

O Papa Francisco, aludindo ao Acordo Católico-Luterano a respeito da justificação, de 1999[2], declarou em uma entrevista que “hoje em dia, os protestantes e os católicos estão de acordo quanto a doutrina da justificação”.

Com todo o respeito que o Papa merece e compreendendo que este tipo de declaração pode ser motivada pela boa intenção de buscar uma aproximação entre católicos e protestantes, creio que se somos realistas temos que aceitar que a situação é bem diferente. Em primeiro lugar, teria que matizar que a referida declaração somente foi firmada pela Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial. Tal Federação representa apenas um conjunto de igrejas luteranas, as quais não abarcam nem 7% do protestantismo e nem sequer a totalidade do luteranismo. É um fato lamentável porém certo que a rejeição do acordo foi praticamente total pelas demais denominações cristãs, incluindo as batistas, metodistas, calvinistas, pentecostais, etc.

E como fez notar acertadamente Luis Fernando Pérez em um artigo publicado em Infocatólica[3], inclusive dentro do próprio luteranismo tal acordo foi amplamente rejeitado por centenas de teólogos e pela Igreja Evangélica da Dinamarca (luterana), com um argumento cheio de senso comum: trata-se de um texto que o próprio Lutero teria rejeitado, pois se aproxima da doutrina católica sobre a justificação e se afasta do “sola fide” do ex-monge agostiniano alemão.

O teólogo protestante José Grau explicou isso da seguinte maneira:

– “O chamado Acordo sobre a Justificação, de 1999, da mesma forma que as conversações que serviram de prolegômenos nas duas últimas décadas do século XX, faz com a doutrina da justificação o mesmo que fez Trento com o agostinianismo: se aproxima semanticamente de Lutero (ainda que sem condená-lo nominalmente, especificamente, sem tampouco levantar a excomunhão vaticana que pesa sobre ele). E assim como em Trento a Igreja Romana descafeinou Agostinho (nota nossa: isto é falso), agora estes luteranos, de braços dados com os católicos, descafeínaram Lutero. O resultado prático não é outro senão a inutilização da ‘dinamite’ da mensagem reformada, luterana, protestante e sobretudo bíblica (o Evangelho é poder ‘dinamite’ de Deus ‘para salvação de todo aquele que crê’, Romanos 1:16), anulando a espoleta das doutrinas da graça mediante uma terminologia teológica que parece do agrado de todos quando lida de passagem, sem se aprofundar nos conceitos. Umas afirmações equilibram as outras de sinal diferente, sem entrar quase nunca no miolo fundamental da questão. Como escreve Pedro Puigvert, na carta a ‘La Vanguardia’ (de 05/11/1999): ‘Os católicos não cederam em nada, porque isso de confessar que a justificação é obra da graça de Deus o têm crido sempre, juntamente com a cooperação humana que agora resulta que também é fruto da graça, ainda que a Escritura o desminta quando diz: ‘Àquele que age não se lhe conta o salário como graça, mas como dívida; mas ao que não age e crê Naquele que justifica o ímpio, sua fé lhe é contada por justiça’ (Romanos 4:5-6). Roma ganhou a batalha doutrinária. Ah, se Lutero erguesse a cabeça!”. 

Pessoalmente, gostaria de compartilhar daquela apreciação do Papa e crer que os católicos e evangélicos verdadeiramente chegamos a professar uma mesma fé a respeito do tema “justificação”; porém, a crua realidade é outra: nem sequer os próprios protestantes, entre eles mesmos, estão de acordo neste tema.

LUTERO TEVE RAZÃO NO QUE DIZ RESPEITO À DOUTRINA DA JUTIFICAÇÃO? 

Hoje está na moda dar razão a Lutero: é politicamente correto. Cremos agora, católicos e evangélicos, que o homem é justificado por meio da graça de Deus? Sim, porém sempre temos crido nisso. O problema está quando se afirma, a respeito das diferenças doutrinárias reais que existiram e existem entre a doutrina católica e a luterana, que Lutero era quem tinha razão.

Se a doutrina de Lutero, que foi condenada dogmaticamente por um Concílio Ecumênico e dogmático, resulta na doutrina verdadeira, seria melhor apagar as luzes e irmos embora, porque então terão razão também os protestantes ao afirmarem que não precisamos nem de Papas nem de Concílios, já que se é como eles sustentam, [Papas e Concílios] podem equivocar-se quando definem aquilo que é dogma de fé.

E se tudo se trata de um gesto diplomático, é necessário recordar, como nos foi sempre ensinado, que um ecumenismo que não encontra-se fundamentado na verdade não é um verdadeiro ecumenismo, e por mais que posemos juntos e sorridentes para as fotos, não estaremos mais próximos hoje uns dos outros como estávamos há 500 anos.

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NOTAS:
[1] http://infocatolica.com/blog/reforma.php/1603310952-370-elogiando-a-lutero-1-cant
[2] http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/documents/rc_pc_chrstuni_doc_31101999_cath-luth-joint-declaration_sp.html
[3] http://infocatolica.com/blog/coradcor.php/1606291202-no-hay-acuerdo-real-catolico

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