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O escândalo de uma vida crucificada

A vida crucificada é loucura para os que se perdem, mas para nós é o poder de Deus.

Dentre os inúmeros incômodos causados pelo catolicismo ao pensamento mundano – que encontra espaço até mesmo em alguns que tão somente com os lábios dizem ser católicos – talvez não haja um mais perturbante e irritante que a virgindade ou celibato; de fato, dizer com a vida: “Deus existe, entrego-me a Ele de modo total e indiviso”, é tão ameaçador para os adversários da moral católica quanto para as trevas uma luz brilhar; ademais, a cruz erguida de tal forma diante dos olhos dos infiéis só pode inspirar desprezo, repugnância e, até mesmo, ódio.

Na virgindade “pelo Reino dos Céus” (Mt 19, 12), a cruz brilha em toda a sua grandeza e beleza; pois, aqueles que optaram pela virgindade pertencem, na radicalidade evangélica, a Jesus Cristo e crucificaram a própria carne com suas paixões e seus desejos (Cf. Gl 5, 24). Virgindade que, como observa Josef Pieper, quer dizer muito mais do que o que comumente pensamos a seu respeito:

Não é um fato, mas um ato; não um estado, mas uma opção. A mera integridade, como fato físico, não é o constitutivo formal da virgindade enquanto virtude, ainda que a integridade possa ser o selo e a coroa da castidade vitoriosa. O ato constitutivo da virgindade como virtude é a resolução, expressa ainda mais profundamente no voto, de abster-se das relações sexuais e do prazer correspondente.[1]

Assim, não é uma realidade simplesmente corporal, física, mas é também uma livre atitude espiritual, uma realidade do coração, uma opção livre por seguir o Senhor em seu Amor de Cruz. Com belíssimas e acertadas palavras, ensinou São João Crisóstomo: “A raiz e o fruto da virgindade é a vida crucificada”[2].

A vida crucificada é raiz porque é dela, da vida mortificada e crucificada com Cristo, que vem o ‘sustento’ e a ‘subsistência’, ela é a ‘fonte’ e ‘nascente’, da virgindade; e se olhamos para Aquele que é a Vida (Cf. Jo 14, 6), o Crucificado (Cf. Jo 19, 17-18) – a Vida Crucificada –, vemo-lO como o ‘sustento’, ‘subsistência’, ‘fonte’ e ‘nascente’, por excelência, dessa entrega total de si.

Como fruto, a vida crucificada é o dom, o presente, o deleite da virgindade. A união ao Senhor Crucificado é o anelo da alma desposada com Cristo – “fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu quevivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 19-20). Que glória maior há do que essa união crucificada? Jesus é a Vida com as marcas da cruz, o Cordeiro Imolado, mas de pé (Ap 5, 6). A cruz, para nós católicos, “é força de Deus” (1Cor 1, 18; Fl 3, 18-19).

O Papa Francisco, em discurso ao episcopado brasileiro, afirmou com belíssimas palavras: “Mas haverá algo de mais alto que o amor revelado em Jerusalém? Nada é mais alto do que o abaixamento da Cruz, porque lá se atinge verdadeiramente a altura do amor!”[3]. E Bento XVI, magistralmente, ensinou: “A cruz é o ato do ‘êxodo’, o ato do amor, que é tomado a sério até o extremo e que vai ‘até o fim’ (Jo 13, 1), e por isso é o lugar da glória, o lugar do toque autêntico e da união com Deus, que é amor (1Jo 4, 7.16)”[4].

Diante de tamanha grandeza, quem vive a virgindade, celibato, compreende que, além de ser virtude essa vida crucificada, muito mais do que “ter feito um dom”, um grande sacrifício a Deus, é perceber que recebeu um grande dom de Deus[5], uma vocação. E esse grande Dom, só é capaz “de compreendê-lo” aquele “a quem isso é dado” (Mt 19, 11-12)[6].

Compreende-se, assim, o escândalo[7] e a irritação causados pela virgindade àqueles que vivem etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse). A virtude e dom da Virgindade desmascara a “cegueira de espírito, […] o amor desordenado de si mesmo, o ódio a Deus, o apego a esta vida e o horror à futura”[8], próprios daqueles que vivem sob o senhorio da luxúria e levantam seu estandarte; esses, são semelhantes ao demônio que é torturado por essas vidas crucificadas com Cristo e investe de todas as formas para destruí-las.

Contudo, para todos os homens de boa vontade, a Virgindade é um grande presente de Deus, um grande dom. Que também o seja para nós! Que a Virgindade vivida por tantos santos e santas da Mãe Igreja, e ainda hoje por tantos clérigos, irmãos e irmãs de vida consagrada, arranque-nos de nossa luxúria e, assim, cercados por tamanha “nuvem de testemunhas” (Hb 12, 1) e intercessores, abracemos a nossa cruz e sigamos a Jesus.

Referências

  1. PIEPER, Josef. Virtudes fundamentais. Lisboa: Editorial Aster, 1960, p. 252.
  2. S. Joann. Chrysost., De virginitate, 80.
  3. Papa Francisco. Encontro com o Episcopado brasileiro no Arcebispado do Rio de Janeiro (Sábado, 27 de Julho de 2013).
  4. RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: do batismo no Jordão à transfiguração. São Paulo: Editora Planeta, 2007, p. 78.
  5. CANTALAMESSA, Raniero. Virgindade. São Paulo: Editora Santuário, 1995, p. 68.
  6. João Paulo II. Audiência Geral, Quarta-feira, 10 de Março de 1982: “E são capazes ‘de compreendê-lo’ aqueles ‘a quem isso é dado’. As palavras citadas indicam com clareza o momento da opção pessoal e simultaneamente o momento da graça particular, isto é, do dom que o homem recebe para fazer tal opção”.
  7. Bento XVI. Vigília por ocasião do Encontro com os Sacerdotes (10 de Junho de 2010): “É verdade que para o mundo agnóstico, o mundo no qual Deus não tem lugar, o celibato é um grande escândalo, porque mostra precisamente que Deus é considerado e vivido como realidade. Com a vida escatológica do celibato, o mundo futuro de Deus entra nas realidades do nosso tempo. E isto deveria desaparecer!”.
  8. MARÍN, Antonio Royo. Teología de la perfección cristiana. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012, p. 607.

Fonte: Padre Paulo Ricardo

Horóscopo dos cristãos

Achei interessantíssimo este treco do Tractatus de São Zenão, bispo de Verona e mártir do 4º século.

Ele apresenta aos neófitos o horóscopo que devem observar após terem renascido pelo batismo.

“Portanto, irmãos, eis o vosso horóscopo.

O primeiro a vos acolher não é Áries, mas o Cordeiro que não rejeita todo aquele que n’Ele crê. Ele revestiu a vossa nudez com o alvo candor de sua lã, com grande bondade derramou o seu leite bendito em nossos lábios que se abriam lamuriosos. Semelhantemente Ele, não como um Touro de pescoço soberbo, de cara agressiva, de chifres ameaçadores, mas como Vitelo ótimo, doce, carinhoso e manso, vos exorta a jamais buscar proteção em alguma atividade, mas a recolher – submetendo-vos sem malícia a sua canga e fecundando, submetendo-a a vós, a terra da vossa carne – nos celestes celeiros a rica safra das sementes divinas.

E mediante os Gêmeos que seguem, isto é, mediante os dois Testamentos que vos anunciam a salvação, vos exorta a evitar sobretudo a idolatria, a impureza e a avareza, que é Câncer incurável.

Mas o nosso Leão, como ensina o Gênesis, é o leãozinho cujos santos sacramentos celebramos, o qual, reclinando-se, adormeceu para vencer a morte e ressurgiu para conferir-se a imortalidade como dom de sua feliz Ressurreição.

Segue-lhe na ordem Virgem, prenunciando Libra, para nos fazer conhecer por meio do Filho de Deus, encarnado e nascido da Virgem, que a equidade e a justiça foram trazidos à terra. Quem as observar constantemente e as administrar fielmente pisará, com pés incólumes, não direi o Escorpião, mas, como afirma o Senhor no Evangelho, todas as demais serpentes.

Mas não deverá temer nem mesmo o próprio diabo, que é ferocíssimo Sagitário, armado de flechas incandescentes, constante causa de terror para os corações de todo o gênero humano. Porque assim diz o apóstolo Paulo: Revesti-vos da armadura de Deus para poder resistir às insídias do diabo abraçando o escudo da fé, por meio do qual podeis repelir todos os dardos incandescentes do maligno. De fato, ele por vezes lança contra os infelizes o Capricórnio, de aspecto deformado, o qual, atacando com seu chifre, sopra de seus lábios pálidos a espuma fervente de suas veias, com apavorante destruição e terríveis efeitos, sobre todos os membros de quem lhe é prisioneiro. Torna alguns loucos, outros furiosos, outros homicidas, outros sacrílegos, outros cegos pela avareza. Seria longo descer aos particulares: ele possui diferentes e inúmeras artes para causar danos, mas todas elas, escorrendo com suas águas salutares, o nosso Aquário como de costume tornou vãs, sem grande dificuldade.

Seguem-no necessariamente em uma única constelação os dois Peixes, isto é, os dois povos, Judeus e Gentios, que recebem a vida da água do batismo, marcados com um único sinal a fim de serem o único povo de Cristo.”

(Zenão de Verona, Trattati, a cura di G. Banterle e R. Ravazzolo, Città Nuova – Società per la conservazione della Basilica di Aquileia, Roma 2008, pp. 151-153.)

Fonte: Messa in latino

Tradução: OBLATVS

São Gregório de Nissa

Por Papa Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

Nas últimas catequeses, falei de dois grandes doutores da Igreja do século IV, Basílio e Gregório de Nazianzeno, bispo em Capadócia, na atual Turquia. Hoje falaremos de um terceiro, o irmão de Basílio, São Gregório de Nisa, homem de caráter meditativo, com grande capacidade de reflexão e uma inteligência desperta, aberta à cultura de seu tempo. Converteu-se assim em um pensador original e profundo da história do cristianismo.

Nasceu por volta do ano 335; sua formação cristã foi atendida particularmente por seu irmão Basílio, definido por ele como «pai e mestre» (Epístola 13, 4:SC 363, 198), e por sua irmã Macrina. Em seus estudos, gostava particularmente da filosofia e da retórica. Em um primeiro momento, ele se dedicou ao ensino e se casou. Depois, como seu irmão e sua irmã, entregou-se totalmente à vida ascética. Mais tarde, foi eleito bispo de Nisa, convertendo-se em pastor zeloso, conquistando a estima da comunidade. Acusado de malversações econômicas por seus adversários hereges, teve de abandonar brevemente sua sede episcopal, mas depois regressou triunfantemente (cF. Epístola 6:SC 363, 164-170), e continuou comprometendo-se na luta por defender a autêntica fé.

Após a morte de Basílio, recolhendo sua herança espiritual, cooperou sobretudo no triunfo da ortodoxia. Participou de vários sínodos; procurou dirimir os enfrentamentos entre as Igrejas; participou na reorganização eclesiástica e, como «coluna da ortodoxia», foi um dos protagonistas do Concílio de Constantinopla do ano 381, que definiu a divindade do Espírito Santo.

Teve vários encargos oficiais por parte do imperador Teodósio, pronunciou importantes homilias e discursos fúnebres, compôs várias obras teológicas. No ano 394 voltou a participar de um sínodo que se celebrou em Constantinopla. Desconhece-se a data de sua morte.

Gregório expressa com clareza a finalidade de seus estudos, objetivo supremo ao que dedica seu trabalho teológico: não entregar a vida a coisas banais, mas encontrar a luz que permita discernir o que é verdadeiramente útil (cf. «In Ecclesiasten hom. »1: SC 416, 106-146).

Encontrou este bem supremo no cristianismo, graças ao qual é possível «a imitação da natureza divina» («De professione christiana»: PG 46, 244C). Com sua aguda inteligência e seus amplos conhecimentos filosóficos e teológicos, defendeu a fé cristã contra os hereges, que negavam a divindade do Espírito Santo (como Eunômio e os macedônios), ou questionavam a perfeita humanidade de Cristo (como Apolinário). Comentou a Sagrada Escritura, meditando na criação do homem. A criação era para ele um tema central. Ele via na criatura um reflexo do Criador e a partir daí encontrava o caminho para Deus.

Mas também escreveu um importante livro sobre a vida de Moisés, a quem apresenta como homem em caminho para Deus: esta ascensão para o Monte Sinai se converte para ele em uma imagem de nossa ascensão na vida humana para a verdadeira vida, para o encontro com Deus. Interpretou também a oração do Senhor, o Pai Nosso e as Bem-aventuranças. Em seu «Grande discurso catequético» («Oratio catechetica magna»), expôs as linhas fundamentais da teologia, não de uma teologia acadêmica, fechada em si mesma, mas ofereceu aos catequistas um sistema de referência para seus ensinamentos, como uma espécie de padrão no qual se move depois a interpretação pedagógica da fé.

Gregório também é insigne por sua doutrina espiritual. Sua teologia não era uma reflexão acadêmica, mas a expressão de uma vida espiritual de uma vida de fé vivida. Como grande «padre de mística», apresentou em vários tratados – como o «De professione christiana» e o «De perfectione christiana» – o caminho que os cristãos têm de empreender para alcançar a verdadeira vida, a perfeição.

Exaltou a virgindade consagrada («De virginitate»), e propôs um modelo insigne na vida de sua irmã Macrina, que foi para ele sempre uma guia, um exemplo (cf. «Vita Macrinae»). Pronunciou vários discursos e homilias, escreveu numerosas cartas. Comentando a criação do homem, Gregório sublinha que Deus, «o melhor dos artistas, forja nossa natureza de maneira que seja capaz do exercício da realeza. Por causa da superioridade da alma, e graças à própria conformação do corpo, faz que o homem seja realmente idôneo para desempenhar o poder régio» («De hominis opificio» 4: PG 44, 136B).

Mas vemos como o homem, na rede dos pecados, com freqüência abusa da criação e não exerce a verdadeira realeza. Por este motivo, para desempenhar uma verdadeira responsabilidade ante as criaturas, tem de ser penetrado por Deus e viver em sua luz. O homem, de fato, é um reflexo dessa beleza original que é Deus: «Tudo o que Deus criou era ótimo», escreve o santo bispo. E acrescenta: «A narração da criação testemunha isso (cf. Gêneses 1, 31). Entre as coisas ótimas também se encontrava o homem, dotado de uma beleza muito superior à de todas as coisas belas. Que outra coisa podia ser tão bela como a que era semelhante à beleza pura e incorruptível?… Reflexo e imagem da vida eterna, ele era realmente belo, mais ainda, belíssimo, com o sinal radiante da vida em seu rosto» («Homilia in Canticum» 12: PG 44, 1020).

O homem foi honrado por Deus e colocado acima de toda criatura: «O céu não foi feito à imagem de Deus, nem a lua, nem o sol, nem a beleza das estrelas, nem nada do que aparece na criação. Só tu (alma humana) foste feita à imagem da natureza que supera toda inteligência, semelhante à beleza incorruptível, marca da verdadeira divindade, espaço de vida bem-aventurada, imagem da verdadeira luz, e ao contemplar-te te convertes no que Ele é, pois por meio do raio refletido que provém de tua pureza tu imitas aquele que brilha em ti. Nada do que existe é tão grande que possa ser comparado à tua grandeza» («Homilia in Canticum 2»: PG 44, 805D).

Meditemos neste elogio do homem. Vejamos também como o homem foi degradado pelo pecado. E procuremos voltar à grandeza originária: somente se Deus está presente, o homem alcança sua verdadeira grandeza.

O homem, portanto, reconhece dentro de si o reflexo da luz divina: purificando seu coração, volta a ser, como era no início, uma imagem límpida de Deus, Beleza exemplar (cf. «Oratio catechetica 6»: SC 453, 174). Deste modo, o homem, purificando-se, pode ver Deus, como os puros de coração (cf. Mateus 5, 8):«Se, com um estilo de vida diligente e atento, lavas as fealdades que se depositaram em teu coração, resplandecerá em ti a beleza divina… Contemplando-te a ti mesmo, verás em ti o desejo de teu coração e serás feliz» («De beatitudinibus, 6»:PG 44, 1272AB). Portanto, é preciso lavar as fealdades que se depositaram em nosso coração e voltar a encontrar em nós mesmos a luz de Deus.

O homem tem como fim, portanto, a contemplação de Deus. Só nela poderá encontrar sua plenitude. Para antecipar em certo sentido este objetivo já nesta vida, tem de avançar incessantemente a uma vida espiritual, uma vida de diálogo com Deus. Em outras palavras – e esta é a lição importante que São Gregório de Nisa nos deixa – a plena realização do homem consiste na santidade, em uma vida vivida no encontro com Deus, que deste modo se torna luminosa também para os demais, também para o mundo.

ENSINAMENTOS

Eu vos proponho alguns aspectos da doutrina de São Gregório de Nisa, de quem já falamos na quarta-feira passada. Antes de tudo, Gregório manifesta uma concepção muito elevada da dignidade do homem. O fim do homem, diz o santo bispo, é o de tornar-se semelhante a Deus, e este fim se alcança sobretudo através do amor, do conhecimento e da prática das virtudes, «raios luminosos que descendem da natureza divina» («De beatitudinibus» 6: PG 44, 1272C), com um movimento perpétuo de adesão ao bem, como o corredor que tende para frente.

Gregório utiliza neste sentido uma imagem eficaz, que já estava presente na carta de Paulo aos Filipenses: «épekteinómenos» (3, 13), ou seja, «tendendo-me» para o que é maior, para a verdade e o amor. Esta expressão plástica indica uma realidade profunda: a perfeição que queremos encontrar não é algo que se conquista para sempre; perfeição é seguir o caminho, é uma contínua disponibilidade para seguir adiante, pois nunca se alcança a plena semelhança com Deus; sempre estamos a caminho (cf. «Homilia in Canticum 12»: PG 44, 1025d). A história de cada alma é a de um amor que é cumulado em cada ocasião, e que ao mesmo temo está aberto a novos horizontes, pois Deus dilata continuamente as possibilidades da alma para torná-la capaz de bens sempre maiores. O próprio Deus semeou em nós sementes de bem e d’Ele surge toda iniciativa de santidade, «modela o bloco… Limando e polindo nosso espírito forma, Cristo em nós» («In Psalmos 2», 11: PG 44, 544B).

Gregório declara: «Não é obra nossa, e não é tampouco o êxito de uma potência humana o chegar a ser semelhantes à Divindade, mas o resultado da generosidade de Deus, que desde sua origem ofereceu à nossa natureza a graça da semelhança com Ele» («De virginitate 12», 2:SC 119, 408-410). Para a alma, portanto, «não se trata de conhecer algo de Deus, mas de ter Deus em si» («De beatitudinibus 6»: PG 44,1269c). De fato, constata agudamente Gregório, «a divindade é pureza, é libertação das paixões e remoção de todo mal: se tudo isso está em ti, Deus realmente está em ti» («De beatitudinibus 6»: PG 44,1272C).

Quando temos Deus em nós, quando o homem ama Deus, por essa reciprocidade que é própria da lei do amor, quer o que Deus mesmo quer (cf. «Homilia in Canticum 9»: PG 44,956ac), e, portanto, coopera com Deus para modelar em si a imagem divina, de maneira que «nosso nascimento espiritual é o resultado de uma opção livre, e nós somos em certo sentido os pais de nós mesmos, criando-nos de uma opção livre, e nós mesmos queremos ser, e formando-nos por nossa vontade segundo o modelo que escolhemos» («Vita Moysis 2», 3: SC 1bis, 108).

Para ascender a Deus, o homem deve purificar-se: «A vida que reconduz a natureza humana ao céu não é mais que se afastar dos maus deste mundo… Tornar-se semelhante a Deus significa chegar a ser justo, santo e bom… Se, portanto, segundo o Eclesiastes (5,1), ‘Deus está no céu’ e se, segundo o profeta (Salmo 72, 28), vós ‘estais com Deus’, isso quer dizer necessariamente que tendes de estar ali onde está Deus, pois estais unidos a Ele. Dado que Ele vos ordenou que, quando rezardes, deveis chamar Deus de Pai, está vos dizendo que sejais semelhantes ao vosso Pai celestial, com uma vida digna de Deus, como o Senhor nos ordena com mais clareza em outro momento, quando diz: ‘Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celestial’ (Mateus 5, 48)» («De oratione dominica 2»: PG 44, 1145ac).

Neste caminho de ascensão espiritual, Cristo é o modelo e o mestre que nos permite ver a bela imagem de Deus (cf. «De perfectione christiana»: PG 46,272a ). Cada um de nós, contemplando-O, se converte no «pintor da própria vida», fazendo que a vontade seja a realizadora do trabalho e as virtudes, como as pinturas das quais pode servir-se (ibidem: PG 46, 272b). Portanto, se o homem é considerado digno do nome de Cristo, como deve comportar-se? Gregório responde assim: tem de «examinar sempre em sua intimidade os pensamentos, as palavras e as ações, para ver se estão dirigidos a Cristo ou se afastam dele» (ibidem: PG 46,284c). E este ponto é importante para o valor que dá à palavra «cristão». Cristão é quem leva o nome de Cristo e, portanto, deve assemelhar-se a Ele também na vida. Nós, os cristãos com o Batismo, assumimos uma grande responsabilidade.

Pois bem, Cristo, recorda Gregório, está presente também nos pobres, de maneira que eles jamais podem ser ultrajados: «Não desprezeis aqueles que estão prostrados, como se por este motivo não valessem nada. Considera quem são e descobrirás qual é a sua dignidade: representam a Pessoa do Salvador. E assim é, pois o Senhor, em sua bondade, lhes prestou sua própria Pessoa para que, através dela, tenham compaixão por aqueles que são duros de coração e inimigos dos pobres» («De pauperibus amandis»: PG 46,460bc). Gregório, como dizíamos, fala de uma ascensão: ascensão a Deus na oração através da pureza de coração; mas ascensão a Deus também mediante o amor ao próximo. O amor é a escada que leva a Deus. Portanto, Gregório de Nisa exorta vivamente aos que o escutavam: «Sê generoso com estes irmãos, vítimas da desventura. Dá ao faminto o que tiras do teu estômago» (ibidem: PG 46,457c).

Com muita clareza, Gregório recorda que todos nós dependemos de Deus, e por isso exclama: «Não penseis que tudo é vosso! Tem de haver também uma parte para os pobres, os amigos de Deus. A verdade, de fato, é que tudo procede de Deus, Pai universal, e que somos irmãos, e pertencemos a uma mesma estirpe» (Ibidem:PG 46, 465b). Então, o cristão deve examinar-se, continua insistindo Gregório: «Mas, de que te serve jejuar e fazer abstinência, se depois com tua maldade não fazes mais que dano a teu irmão? O que ganhas, ante Deus, pelo fato de não comer do teu, se depois, atuando injustamente, arrancas das mãos do pobre o que é seu?» (Ibidem: PG 46,456a).

Concluamos nossas catequeses sobre os três grandes padres da Capadócia recordando mais uma vez esse aspecto importante da doutrina espiritual de Gregório de Nisa, que é a oração. Para avançar no caminho para a perfeição e acolher Deus em si, levando em si o Espírito de Deus, o amor de Deus, o homem tem de dirigir-se com confiança a Ele na oração: «Através da oração conseguimos estar com Deus. E quem está com Deus, está longe do inimigo. A oração é apoio e defesa da castidade, freio da ira, sossego e domínio da soberba. A oração é custódia da virgindade, proteção da fidelidade no matrimônio, esperança para quem vela, abundância de frutos para os agricultores, segurança para os navegantes» («De oratione dominica 1»:PG 44,1124A-B).

O cristão reza inspirando-se sempre na oração do Senhor: «Se, portanto, queremos pedir que desça sobre nós o Reino de Deus, pedimos com a potência da Palavra: que eu seja afastado da corrupção, que seja libertado da morte e das correntes do erro; que nunca reine sobre mim a morte, que não tenha nunca poder sobre nós a tirania do mal, que não me domine o adversário nem me torne seu prisioneiro com o pecado, mas que venha a mim teu Reino para que se afastem de mim, ou melhor ainda, se anulem as paixões que agora me dominam» (ibidem 3:PG 44,1156d-1157a).

Terminada sua vida terrena, o cristão poderá dirigir-se com serenidade a Deus. Falando disso, são Gregório pensa na morte de sua irmã Macrina e escreve que ela, no momento da morte, rezava a Deus com estas palavras: «Tu, que tens na terra o poder de perdoar os pecados, perdoa-me para que possa ter descanso (cf. Salmo 38, 14), e para que me apresente em tua presença sem mancha, no momento no qual fico despojada de meu corpo (cf. Colossenses 2, 11), de maneira que meu espírito, santo e imaculado (cf. Efésios 5, 27) seja acolhido em tuas mãos, ‘como incenso ante ti’ (Salmo 140,2)» («Vita Macrinae 24»: SC 178, 224). Este ensinamento de São Gregório continua sendo válido sempre: não podemos somente falar de Deus, mas levar Deus em nós mesmos. E o fazemos com o compromisso da oração e vivendo no espírito de amor por todos os nossos irmãos.

Pregador do Papa: «Bem-aventurados os puros de coração porque verão Deus»

Primeira pregação da Quaresma ao Papa e à Cúria

CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 9 de março de 2007 (ZENIT.org).- «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus — As bem-aventuranças evangélicas» é o tema da primeira pregação da Quaresma que, ante Bento XVI e a Cúria, pronunciou nesta sexta-feira o Pe. Raniero Cantalamessa O.F.M. Cap, pregador da Casa Pontifícia.

Oferecemos na íntegra o texto da pregação.

* * *

Pe. Raniero Cantalamessa

“BEM-AVENTURADOS OS PUROS DE CORAÇÃO, PORQUE VERÃO A DEUS”
Primeira pregação da Quaresma

1.Da pureza ritual à pureza de coração

Continuando com a nossa reflexão sobre as bem-aventuranças evangélicas iniciada no Advento, nesta primeira meditação de Quaresma queremos refletir sobre a bem-aventurança dos limpos de coração. Qualquer um que lê ou ouve proclamar hoje: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus», pensa instintivamente na virtude da pureza, a bem-aventurança é quase o equivalente positivo e interiorizado do sexto mandamento: «Não cometerás atos impuros». Esta interpretação, proposta esporadicamente no curso da história da espiritualidade cristã, se fez predominante a partir do século XIX.

«Pureza está intimamente associada à dignidade do corpo humano», diz cardeal

Penitenciário-mor da Igreja Católica, James Stafford, presidiu peregrinação a Fátima

FÁTIMA, quinta-feira, 13 de julho de 2006 (ZENIT.org).- Segundo o penitenciário-mor da Igreja Católica, a «pureza está intimamente associada à dignidade do corpo humano».

O cardeal James Francis Stafford abordou o tema da pureza e da castidade ao presidir esta quarta e quinta-feira a Peregrinação Internacional Aniversária a Fátima, celebrativa dos 89 anos da terceira aparição de Nossa Senhora em Fátima, a 13 de julho de 1917.

No contexto do tema da peregrinação –«Crescei e multiplicai-vos»–, o cardeal explorou em sua homilia proferida durante a Eucaristia da vigília noturna de oração dessa quarta-feira «a mais misteriosa das virtudes», a pureza, na qual os «cristãos nunca teriam sequer pensado» «se não tivessem olhado em frente para a ressurreição do corpo».

Segundo o penitenciário-mor da Igreja, «muitos daqueles que ainda se encontram influenciados pelas teorias mecanicistas do século XIX acham que os ensinamentos da Igreja no que respeita à virtude são horríveis e de modo especial rejeitam os seus ensinamentos no que toca às virtudes da castidade e da pureza».

«Zombam da observância do sexto mandamento como sendo causa de perturbações emocionais, afirmando mesmo ser completamente repugnante e contra a natureza», afirma.

Dom Stafford afirma que é fundamentalmente a lembrança do Mistério Pascal de Cristo e do batismo de cada um aquilo que fornece a fundação e a motivação para a prática da virtude da pureza e de todas as outras virtudes.

«São Paulo –afirma o cardeal– ensinou exatamente a mesma norma quando escreveu: “Finalmente, irmãos, nós vos suplicamos e exortamos no Senhor Jesus que, do mesmo modo que aprendestes de nós como deveis viver e agradar a Deus, o que estais precisamente fazendo, assim também procurai fazê-lo cada dia mais e mais… Pois esta é a vontade de Deus: a vossa santificação; que eviteis a impureza” (1 Tes.4-1,3)».

E explica que «em todo o Novo Testamento a prática da virtude era baseada na manifestação do ‘escathon’, isto é, na obra de salvação de Jesus pela Sua Morte e Ressurreição».

O cardeal confidenciou no decorrer de sua homilia o «quão profundamente» o afetou a canonização, no dia 24 de junho de 1950, da jovem virgem-mártir Maria Goretti.

«Presentes na Praça de São Pedro naquela ocasião encontravam-se a mãe dela e o seu assassino, Alessandro Serenelli. Ao tempo do seu martírio em defesa de sua pureza, eu tinha 17 anos de idade. O seu testemunho de pureza e coragem tornou-se a estrela polar da minha geração», diz.

O cardeal narra a história do martírio: «Começou a 5 de Julho de 1902. A família do seu atacante partilhava a mesma casa com a família Goretti. Situava-se por cima de um velho palheiro numa zona de pobres lavradores, os pântanos Pontine, a Sul de Roma».

«O seu atacante, Alessandro, tinha vinte anos de idade na altura do ataque contra Maria de 12 anos. Ele testemunhou mais tarde que Maria apelou a que ele parasse com o ataque para salvação de sua alma e que não cometesse tão grave pecado. Antes de morrer no dia seguinte das facadas infligidas, ela perdoou-lhe e rezou para que Deus lhe perdoasse também».

Segundo o cardeal Stafford, «como Flannery O’Connor, S. Maria Goretti, cuja memória a Igreja acaba de celebrar no dia 6 de julho, percebeu que a pureza está intimamente associada à dignidade do corpo humano».

«Ela estava consciente de que a Igreja ensinava que não era a alma mas o corpo que havia de ressuscitar glorioso. Em união com a Igreja ela professava todos os domingos: “Eu creio na ressurreição da carne (do corpo)”. Ela deu testemunho deste mistério: que a Encarnação e Ressurreição de Jesus constituem as verdadeiras leis da natureza, da carne e do físico», afirma.

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